28 de junho de 2015

CRÍTICA: Saló ou os 120 Dias de Sodoma

Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975, Pier Paolo Pasolini

Por Mariana Brandão


Nada é somente aquilo que se vê. É preciso perceber as entrelinhas e os pequenos detalhes da obra para entendê-la integralmente e discutir tanto sobre o contexto, como sobre seus realizadores e a mensagem transmitida. Na transposição de sentidos para uma produção cinematográfica, Pasolini tem maestria em retratar o momento histórico e as motivações humanas em sociedade, principalmente ao abordar um tema polêmico como em Saló ou os 120 Dias de Sodoma.

Inspirado no romance 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, escrito em 1785, Pasolini retrata a história de um grupo de fascistas que sequestram jovens e submetem os rapazes e moças à violência, tortura, abuso sexual e as mais estranhas perversidades. A história ocorre entre 1944 e 1945, durante a ocupação nazifascista no norte da Itália, especificadamente em Salò – cidade conhecida pelas crueldades que aconteceram no regime de Mussolini –, tendo assim uma conexão com o tema implícito, mas principal, da obra: o poder.

Ao iniciar o filme com uma distinção de títulos dos quatro homens protagonistas da película, é possível entender o nível hierárquico em que aquelas pessoas estão e, consecutivamente, apreender a representação de poderes – econômico, religioso, judicial e nobreza – que o realizador propõe, já levando em consideração que tais personagens são quem pregarão o sofrimento e humilhação nos dias seguintes.

Até então o filme não provoca tanto estranhamento como nas cenas seguintes, que são essencialmente bizarras, principalmente pela naturalidade em que os personagens ditos poderosos assistem à submissão e tortura dos sequestrados. É preciso ter estômago para enfrentar sequências de coprofagia e sadismo sem deixar o olhar escapar da tela.

Vale a pena observar a separação do filme em partes: Antes do inferno, para retratar a introdução aos atos de abuso, com a captura dos jovens; Círculo de manias, com a apresentação dos desejos sexuais, iniciando a metáfora da submissão e o poder; Círculo das fezes, quando os submissos jovens são obrigados a ingerir fezes, trazendo a alusão à indústria do consumo; E círculo de sangue, momento em que as torturas sanguinárias acontecem. A opção dessa divisão tem reflexo nos diferentes temas abordados em cada parte, como por exemplo, na segunda, quando os jovens são tratados como animais, cujos “donos” mandam-nos comer a refeição jogada ao chão, ou o casamento forçado.

A película dá a impressão que é o sistema social e econômico que está falando com o espectador, dizendo-lhe o que é para comer e como agir – fato favorecido pelo posicionamento da câmera, que age majoritariamente de modo distante dos personagens, até mesmo imparcial –, submetendo-o a um regime totalmente abusivo aos instintos básicos humanos. Posso chegar a dizer que esse é o motivo pelo qual o filme é tão pesado e indigesto para certos olhos.

O sexo na obra é uma relação entre poder e submissão, como afirma Pasolini num documentário feito por Amaury Voslion. O sadismo exposto na tela significa o controle do corpo humano e a redução desse corpo em objeto, ou seja, a essência humana torna-se apenas uma “coisa” com os adventos do consumo, capitalismo e valorização do poder. Tal poder que aliena e estipula um falso valor em tudo. Pela ênfase na submissão social a partir do poder, trazendo traços econômicos, o discurso de Pasolini chega a ser marxista.

Há também uma identificável subversão da ordem de causa e consequência, como por exemplo, no concurso de cu mais bonito, o ganhador teria a recompensa da morte. “Você deve ser estúpido ao pensar que a morte seria tão fácil assim. Você não sabe que pretendemos matá-lo milhares de vezes? Ao fim da eternidade, se é que a eternidade tem um fim.”, responde um dos protagonistas ao final da cena. O discurso de Pasolini em relação a essa oposição está representado em situações como a citada, mas também imageticamente, com o frequente contraste entre corpos nus e exuberantemente vestidos, e na fala dos personagens, às vezes profundas demais, com citações a Barthes e Simone de Beauvoir, ou rasas demais, como as poucas palavras da pianista – que, aliás, tem olhares marcantes nas cenas e, ao ver tudo o que lhe circunda, suicida-se.

Devido à escolha comum de Pasolini por atores amadores, a atuação dos jovens é visivelmente forçada, mas acaba por dar um tom inocente e singular a esses personagens. O gosto por diálogos complexos não abandona essa película, entretanto o autor consegue incorporá-los na narrativa de forma menos cansativa, como na contação de história das senhoras prostitutas.

Um dos filmes mais polêmicos da história, por seu conteúdo de sexo, sadismo e violência explícita, Saló ou os 120 Dias de Sodoma chocou plateias inteiras no seu lançamento e foi proibido em vários países. Ainda que essa recepção fosse prevista, ou não, o autor mostrou, mais uma vez, sua capacidade de fazer crítica política, social e religiosa como ninguém. Alguns dizem que sua morte, ocorrida pouco tempo depois do término da filmagem, foi um reflexo dessa reação a sua postura crítica. Pasolini pensava sobre sua época com os olhos abertos e sem ter medo de comprometer-se.

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