28 de junho de 2015

CRÍTICA: A mulher sem cabeça

La mujer sin cabeza, 2008, Lucrecia Martel

Por Lorena Fragoso


A noção de que o sentimento de culpa é sempre nocivo para quem o possui faz parte do senso comum. Segundo Freud, em “O mal-estar da cultura”, o sentimento de culpa é uma “variação topográfica da angústia”. Tal angústia, quando atrelada à dúvida de não saber o que realmente aconteceu, abala a sanidade do indivíduo a ponto de levantar questionamentos constantes sobre o que si mesmo e sobre o que é real ou não.

Essa é a situação apresentada por Vero, protagonista do filme de Lucrecia Martel, lançado em 2008. Após um acidente que a faz passar por cima de algo/alguém no meio da estrada, a personagem parece realmente perder a cabeça diante da confusão que se passa dentro de si, sem saber se atropelou um animal ou um ser humano. O papel estrelado por Maria Onetto reflete uma mulher perdida, que acaba por esquecer o número do seu escritório e até mesmo a sua função no trabalho, quando chega ao consultório onde trabalha como dentista e pensa ser apenas uma paciente, entre outras situações onde demonstra não estar consciente de si e do que acontece em sua volta. Tendo como base a ideia de que o espectador se personifica e se vê refletido em personagens diante de certas situações, durante todo o filme o sentimento de culpa e de dúvida é transferido para quem o assiste. Logo após o acidente, a câmera mostra um corpo estirado no chão, aparentemente de um animal que pertencia às crianças mostradas previamente brincando naquele mesmo lugar. O espectador, convencido daquilo que viu, passa a duvidar de si mesmo quando Lucrecia Martel faz um trabalho brilhante de suspense crescente, revelando lentamente informações que de alguma forma estão interligadas ao acidente. A tensão é intensificada na mesma proporção da angústia sentida pela personagem.

A atenção da diretora aos detalhes enriquece a história em níveis absurdos. Dentro do carro de Vero, antes do acidente acontecer, é possível enxergar a marca de uma mão de uma criança que tem destaque no vidro devido ao ar empoeirado da estrada. Após o acidente, a marca daquela mão é substituída por outras duas, posicionadas como se estivessem estendidas. Além disso, durante todo o filme é possível perceber que Vero está sempre em evidência enquanto os acontecimentos ao seu redor, seja em cenas onde ela está no plano de fundo ou à frente de outros personagens, estão sempre desfocados, simbolizando exatamente como ela está se sentindo naquele momento. Perdida. Sem foco. Também é válido destacar a presença freqüente de cenas onde a fotografia enquadra a personagem apenas dos ombros pra baixo, como se ela realmente estivesse sem cabeça; destacando-se aqui a cena onde Vero observa angustiada pela janela quando o seu marido retira a carcaça de um animal de dentro de casa.

Lucrecia Martel nos dá um leque de reflexões e dúvidas como se nós mesmos fôssemos cúmplices daquele roteiro, daquela história. O espectador se vê tão imerso na inquietude quanto Vero, que ao final do filme tinge seus cabelos de outra cor simbolizando um novo momento de sua vida, onde tudo aquilo foi deixado pra trás. Entretanto, o filme deixa em aberto todas as perguntas que foram feitas: não se sabe realmente o que aconteceu naquele acidente; de quem ou de quê era o corpo estendido na estrada. Não se sabe se a noite vivida no hotel após o acidente realmente aconteceu ou foi apenas um delírio, especialmente pelo jogo de luz utilizado onde o seu cunhado está frequentemente em meio às sombras. Perdemos a cabeça junto com Vero e seguimos em frente ao vermos a tela escurecer, igual aos seus cabelos, deixando pra trás toda a culpa e responsabilidade que aquela história nos trouxe. 

Um comentário:

  1. Esse filme, assim como "Enemy" do Villeneuve, nos dá incrível sensação de "O que está acontecendo?", e os cortes e enquadramentos são espetaculares e sutis. Gostei muito desse filme e pretendo rever para pegar todos os detalhes.

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