30 de junho de 2015

CRÍTICA: A rotina tem seu encanto

秋刀魚の味, 1962, Yasujirō Ozu

por Victor Leite


Mergulhando na sutileza, em 2.5D

Comecei o filme com sono. Não que o filme tenha me dado essa sensação, mas já estava com sono antes de começa-lo. É um erro, eu sei. Mas em seu início, A Rotina Tem Seu Encanto já encanta (sacou?). Cartelas com ilustrações e uma trilha sonora amena ditam o tom dos próximos quase 120 minutos de filme. Shūhei, um viúvo que lutou na Segunda Guerra Mundial, encontra com um velho professor e a partir do conhecimento que a filha desse professor nunca se casou, começa a refletir sobre seu futuro e de sua família, especialmente da filha, Michiko.

Na crítica do site contracorrente, há a seguinte frase: “Ao deslizar sobre esta superfície, os personagens revelam um mundo bidimensional, que se desdobra em labirintos espaciais sem relevo.” Eu discordo. A escolha do diretor em câmeras estáticas criam um cenário talvez até mais tridimensional do que as câmeras rodopiantes de hoje em dia. Cada plano parece uma pintura, um registro dessa família japonesa, que nos convida a entrar em sua casa e conhecer sua encantadora (sacou?) rotina.

Os cortes entre uma cena e outra, também marca registrada do diretor, nunca utilizam o fade out ou outros meios típicos. Ozu se utiliza de planos com determinados objetos ou edifícios, geralmente onde a próxima cena irá acontecer ou a última cena aconteceu. Confesso que na primeira vez, isso causa certo estranhamento. Mas a medida que o filme progride, essas transições entre as cenas se tornam uma coisa orgânica dentro do filme, totalmente compreensível e agradável com o ritmo.

Mas eu encontrei na narrativa um dos pontos mais fortes do filme (como sempre acontece comigo). Não que o filme não seja impecável em sua fotografia, áudio, direção ou outros aspectos técnicos. Kōgo Noda, roteirista que colaborava frequentemente com Ozu (e, curiosamente, esse foi o último filme dos dois) consegue junto com o diretor (que co-escreveu o roteiro) criar uma história singela e sutil, contudo não menos poderosa. A história desse pai e sua família consegue abordar temas pesados como velhice, machismo, guerra, amizade e a própria vida com uma leveza improvável a principio, mas alcançada com louvor. Penso nesse filme como uma reflexão de seu protagonista: quando percebe que os rumos da vida (através de seu antigo professor, seus amigos, filhos, etc) nem sempre acontecem como planejado, ele questiona se suas decisões foram as melhores para aqueles a que suas decisões influenciariam. Em quase todas as cenas, existe alguém bebendo, ele ou seus amigos na maioria. É a forma de descanso e lazer daqueles que já viveram tanto, já sofreram tanto e agora apenas querem viver uma vida sossegada e em seus limites, feliz. A ausência de qualquer tipo de vilania, maquinação ou maldade em si também é um dos pontos positivos da narrativa. É lindo apenas ver seres humanos, com suas fraquezas, alegrias e tristezas, apenas lá, vivendo suas rotinas. Existe uma cena particular (a cena que realmente me acordou do sono) que me fez ficar grudado na tela: a filha do professor de Shūhei senta-se em um banco e chora, vendo seu pai bêbado e claramente infeliz com seu destino. Posteriormente, após outra visita do ex-aluno, o próprio professor senta nesse mesmo banco e repete a expressão da filha. Palavras não existem para descrever o que essa cena causou e significou para mim. Única e poderosa, capaz de dizer muito apenas com duas imagens: filha e pai, iguais.

Claramente, Ozu era um mestre do cinema. Com duas horas de conversas, descobertas, risos e romance, esse filme consegue entreter e maravilhar, com sua onipresente sutileza. Um achado da sétima arte que deve ser visto por todos, principalmente para recalibrar aqueles mais acostumados com tiros, explosões e movimentação acelerada. Seus planos fixos vão lhe encantar (prometo que parei).

28 de junho de 2015

CRÍTICA: Fahrenheit 11 de Setembro

Fahrenheit 9/11, 2004, Michael Moore

Por Evandro Lira


Michael Moore e seu cinema dividem opiniões desde o início da sua carreira, lá em 1989 com o documentário Roger e Eu. Conhecido e mitificado pela sua postura crítica em relação à figura política e econômica dos Estados Unidos, que transcende as fronteiras de todo o mundo, Moore escancara em suas obras tudo que há de mais sórdido nos bastidores dessa grande potência.

E não é mesmo tão difícil arranjar admiradores e inimigos quando se vai por esse viés. Como ensina uma famosa sabedoria popular: política, tal qual gosto, futebol e religião, não se discute. Gostar ou não dos filmes de Michael Moore é basicamente separar esquerda de direita, democrata de republicano, comunistas de capitalistas... e nós não podemos cair nesse erro, afinal se as coisas fossem tão simples assim tudo isso não seria discutível.

Tocando na ferida do povo americano a cada novo filme ou livro (Moore também é escritor), ele usa fatos trágicos que ocorreram, seja na sua pequena cidade do interior ou no grande centro financeiro do país, como ponta pé para questionar o que precisa ser questionado.

É obvio que não seria diferente no seu Fahrenheit 11 de Setembro, 2004. Com um Oscar na prateleira (por Tiros em Columbine, 2002), um público formado, e as atenções voltadas para seus novos trabalhos, Michael Moore destrincha os acontecimentos que levaram ao “maior atentado terrorista da história” e principalmente as consequências que dele se fizeram. Está lá o seu habitual sarcasmo afiado, seu total senso de parcialidade, sua narração maliciosa e sua estética requintada.

O filme abre contextualizando o espectador nas eleições presidenciais americanas de 2000, na qual o vice-presidente Al Gore disputava com o governador do Texas, George W. Bush. No primeiro minuto, Moore já sugere que a vitória de Bush foi resultado de fraude eleitoral, polêmica de caráter amplamente discutida pelo povo americano.

O então Presidente Bush é quase que o pro-antagonista de Fahrenheit, sem dúvidas. Mostrando gravações de arquivo de um Bush confiante, debochado e infantil, diferente do que se costuma ver nos discursos políticos, Moore nos mostra que os primeiros oito meses de mandato do presidente não foram muito bem sucedidos. Crises na economia, no congresso e nas ruas, resumem o 2001 dos EUA. E dando início ao seu humor elaborado, Moore nos mostra que a solução encontrada por W. Bush foi tirar umas férias. Tem-se então uma sequência divertida, com trilha sonora animada, montagem rápida, um Bush sorridente e animado, mas... não por muito tempo.

Os créditos do filme se dão paralelamente com cenas de jornalistas e políticos – incluindo o próprio Bush – se maquiando antes de alguma aparição pública na tv. Percebe-se uma sutil investida do cineasta para dizer o quão bons atores são esses personagens reais. Após isso, uma tela preta toma o filme por uns minutos, e só conseguimos ouvir gritos de horror, ambiente, barulhos de sirenes e é impossível não remetermos imediatamente ao 11 de setembro. Moore não mostra em nenhum momento das duas horas de duração aquelas cenas que chocaram o mundo das torres em chamas ou dos aviões se chocando, afinal nós estamos cansados de vê-las. O que importa aqui é o que causou nas pessoas, é o sentimento, Moore vai fundo nas emoções do povo, de forma objetiva, mas não simples. Como prova, o que se segue à esse momento são closes das pessoas nas ruas e suas reações naquela manhã do atentado.

Por incrível que pareça, o filme não é sobre a tragédia do 11 de setembro, e sim sobre todo o contexto dessa e à partir dessa. Fahrenheit é sobre a política do medo que se estabeleceu não só nos Estados Unidos, mas em todo o planeta. É sobre como o ocidente passou a olhar pra si mesmo no início desse século que começava, e sobre como desde então encaramos de forma tão pré-julgadora os motivos dos outros, só pensando no nosso bem-estar e segurança.

O documentário aborda as verdadeiras razões do Governo Bush invadir o Afeganistão em 2001 e o Iraque em 2003, que segundo o filme, se deram mais pelos interesses particulares da indústria de petróleo dos EUA que do interesse em proteger os americanos do “inimigo”. Moore ainda especula uma possível relação de negócios entre a família de George W. Bush com diversas famílias árabes, incluindo a família Bin Laden, causa essa que levou o governo a liberar parentes de Osama logo após os atentados sem qualquer tipo de interrogatório.

Focando na “guerra ao terror”, podemos ver retratos impiedosos causados pela invasão no Iraque, com milhares de civis mortos, incluindo crianças – Moore não nos poupa de cenas como essas. Ele nos mostra também um lado pouco explorado desse contexto, o dos soldados e suas famílias. Sim, Moore não é anti-americano, pelo contrário, os americanos são vítimas de todo um sistema nos seus filmes.

Conhecemos o Patriot Act num dos momentos do longa, um plano do governo que se livrou de algumas amarras da Constituição para se tornar um ato legal. Ele promove a espionagem, fere gravemente os direitos civis e humanos, se dando o direito de obter qualquer informação de interesse do governo. Moore repudia o ato claramente, e mostra que isso foi uma escolha imposta ao povo americano pelo governo com base em toda a sua política do medo.

Michael Moore realmente explora as emoções do espectador com todos os artifícios possíveis, como o uso da trilha sonora melancólica nos momentos certos, os closes nos rostos das pessoas entrevistadas, nas perguntas extremamente persuasivas que faz a elas e etc.

Seu senso de montagem é brilhante, toda a estética do seu filme é precisa e eficiente. O documentarista sabe, melhor do que ninguém, como fazer perguntas constrangedoras sem a menor vergonha na cara, como fica claro no momento em que ele está em frente ao congresso nacional, abordando os congressistas e pedindo os nomes de seus filhos para alistá-los na guerra. É cruel, mas revigorante ao mesmo tempo.

Moore é facilmente acusado de manipulador, oportunista, anti-ético, e é difícil não concordar com isso, pois me parece óbvio. No entanto, acho fácil assumir que Moore não é hipócrita, ele faz tudo isso sem maquiagem. Usa a ferramenta que melhor domina, o cinema, para dizer o que pensa, e ora, não é isso a arte?

O filme acaba por levantar uma discussão interessante sobre o próprio cinema, no caso sobre o gênero documentário: a necessidade de documentar sem intervir, sendo imparcial. Fica muito claro assistindo Fahrenheit, e todos os outros do cineasta, que isso não se prova correto. Se Moore não faz documentário, o que ele faz? A neutralidade pode sim estar presente num filme documentário, se assim for a sua proposta, mas eu particularmente acho essa uma tarefa difícil. Nem a própria imprensa, que tem o discurso de mostrar o fato pelo fato cumpre esse papel, e aí está um dos maiores perigos dos meios de comunicação de massa e também um dos maiores méritos de Michael Moore. Ele mostra o que quer, deixando extremamente claro que é nisso que ele quer que você acredite.

Não é na parte jornalística que Michael Moore tem os seus melhores momentos, e sim nos aspectos narrativos dos seus filmes. O mais interessante de Fahrenheit não é quando os fatos são mostrados, e sim quando casos são expostos, desabafos são vistos, ouvidos e sentidos. Michael Moore não é só um cidadão com uma causa, ele é um artista, um homem do entretenimento, um contador de crônicas sociais.

CRÍTICA: NOW!

Now, Santiago Alvarez, 1965

por Victor Leite



O videoclipe da revolução

Censurada nos E.U.A por ser “subversiva demais”, a música Now, de Lena Horne, declara em sua letra: “a mensagem dessa música não é sútil...”. Como poderia então o curta cubano que tem essa música como trilha sonora seguir esse caminho? A mensagem é direta, incisiva e inquietante. Usando diversas imagens dos anos 60 dos E.U.A, quando a luta pelos direitos civis dos negros atingiu seu pico, o curta usa de imagens chocantes para passar sua mensagem. Repressão policial, uma analogia ao nazismo e KKK, podemos perceber que nesse vídeo o governo dos E.U.A é o grande vilão. Com pouco mais de cinco minutos de duração, o curta pode ser visto como um videoclipe para canção, inclusive sendo considerado como o primeiro videoclipe da história. Os significados dos dois sem complementam e juntos, formam um curta metragem poderoso e com um significado explícito. Dialoga com a revolução cubana, com os embargos comerciais contra Cuba e explora essa veia vilanesca dos Estados Unidos, tentando pintar essa imagem enquanto usa a história do próprio país. Há também um paralelo com os tempos atuais, em que protestos ao redor do mundo encontram violenta repressão policial. Mas como Lena Horne avisa na canção: O momento é agora!

CRÍTICA: Jurassic World - O mundo dos dinossauros

Jurassic World, Colin Trevorrow, 2015

por Victor Leite


Sobre uma sucessão de erros

O que um filme de ação deve ter para chamar a atenção do público? Cenas que te deixam na ponta da cadeira e que te fazem prender a respiração? Vilões fortes que oferecem perigo aos protagonistas? Personagens que você se importa? Bem, não perguntem a Jurassic World, por que ele está cheio das respostas erradas.

Estrelando Bryce Dallas Howard como Claire, a gerente de operações do novo parque dos dinossauros, localizado numa paradisíaca ilha da Costa Rica, e Chris Pratt como... o mocinho bonito e aventureiro (ele já fez esse papel em Guardiões da Galáxia), o filme realmente não se preocupa (ou não consegue) desenvolvê-los ao ponto de você se preocupar com eles. A figura do vilão, ou a tentativa de se criar uma, é pifía. Todos os personagens se tornam caricaturas, reduzidos às suas funções básicas do enredo e impossibilitados de transcedê-las.

De fato, um dos maiores problema desse filme parece ser o roteiro. Com um enredo que toma emprestado várias sacadas do primeiro filme da série, de 1993, podemos pensar nele como uma tentativa de atualizar a franquia para um público mais jovem. Se percebemos ao longo do filme uma dúzia de saídas fáceis e soluções que não fazem sentido para os conflitos apresentados, o entretenimento que o filme deveria proporcionar acaba não se concretizando. Algumas situações que deveriam servir como escape humorístico chegam a beirar o ridículo. A preferência dos meninos a ficar com o mocinho, mesmo depois de Claire se mostrar tão capaz quanto (e ser a TIA deles!), ou até mesmo o salto inquebrável da heroína, que o usa até o final do filme, seja pra andar na floresta, dirigir um furgão ou correr de dinossauros. Talvez o Universo Marvel tenha tido um crossover com Jurassic World: provavelmente o salto era de adamantium.

Sendo o filme que faturou um bilhão de dólares mais rápido na história do cinema, é pertinente se perguntar que tipo de blockbusters o público está mais interessado em assistir. Mad Max: Fury Road, um filme de George Miller bastante elogiado pela crítica e público no ano de 2015, conseguiu pouco mais de 350 milhões de dólares mundialmente, enquanto os números de Jurassic World só aumentam a cada dia. Embora os efeitos especiais e a trilha sonora ainda consigam empolgar, existe muito pouco conteúdo pra uma técnica eficiente.


PS.: Segue um texto muito interessante sobre o filme e sua abordagem sobre as personagens femininas do longa, outro aspecto bastante problemático: Why Jurassic World doesn't deserve Claire Dearing (or her high heels)

CRÍTICA: Fuga de Nova York

Escape from New York, John Carpenter, 1981

Por Tiago Lima


Um aspecto interessante presente em filmes futuristas produzidos no século passado reside no fato de que os idealizadores imprimem uma visão particular a respeito de como seria a configuração social dos tempos ainda por vir. John Carpenter, em seu "Fuga de Nova York", se baseia em um aspecto mais catastrófico - até mesmo pós apocalíptico - na sua visão futura da cidade de Nova York. No filme, que se passa no ano de 1997, a cidade norte-americana seria transformada em uma prisão de segurança máxima, onde vivem exclusivamente grupos marginalizados que convivem com uma imagem totalmente diferente da realidade da metrópole, agora suja, em ruínas e sem qualquer tipo de higienização.

A representação da cidade composta pela direção de arte cria a atmosfera perfeita para que seja desenvolvida a trama principal do filme, a operação de resgate do presidente do Estados Unidos, cujo avião foi sabotado e derrubado na parte da cidade onde fica localizada a prisão. Para pôr em prática o plano elaborado pelos responsáveis pela administração da prisão, um dos presos, Snake Plissken é recrutado, com a promessa de receber sua liberdade caso tenha sucesso em sua missão.

A partir desse acontecimento, abre-se espaço para uma série de cenas repletas de ação e suspense que conseguem prender o espectador, como num bom filme blockbuster hollywoodiano. Entretanto, no que pode passar despercebido pelo "grande público" reside o que há de mais grandioso na produção de John Carpenter.

Ao abordar o espaço urbano da cidade de Nova York de uma forma completamente diferente do que se concebe na realidade, o filme adentra em uma discussão acerca da composição social, das relações entre o espaço urbano e as pessoas, entre outros.

O roteiro se constrói de forma inteligente, conseguindo se posicionar em sua crítica através de recursos básicos do cinema, o que é de extrema importância para o espectador, que busca diversão e entretenimento e o consegue plenamente. Porém, enquanto Snake se aventura por uma cidade marginalizada e sem as mínimas condições de se viver, tanto para a sociedade contemporânea ao lançamento do filme, quanto para a atual e, sem dúvidas, para a de qualquer época posterior, há um crescente crítica a essa mesma sociedade que analisa a Nova York do filme como uma impossibilidade.

Sentir-se seguro em qualquer parte do mundo requer certos pré-requisitos. No filme de John Carpenter, não há nenhum. A cidade de Nova York encontra-se habitada pelo que pode ser considerado como o escárnio social, que caminha pelas ruas, agora todas com características de gueto.

Intrigante imaginar os motivos pelos quais o território completo de uma cidade passou a ser utilizado como uma prisão. Mais intrigante ainda é perceber que a concepção arquitetônica de cidades difundida nas últimas décadas, na qual a visão de progresso está diretamente atrelada à verticalização e isolamento de espaços entre os outros como forma de segurança, é a principal motivação para a crítica que Carpenter faz em seu filme.

Mesmo que muitas vezes nos passe despercebido, estamos presos em meio à loucura das cidades, seja ela de cunho social ou da própria arquitetura das cidades. Carpenter percebe isso muito bem, criando o contexto de seu filme baseado em uma possibilidade distante, mas ao mesmo tempo possível, justamente pelo fato de já vivermos em uma espécie de prisão.

Ao hiperbolizar o cenário que observa cotidianamente, o diretor se aprofunda numa crítica à arquitetura das cidades e ao que se relaciona a ela: a sociedade.

Habitada por grupos marginalizados, a prisão de Nova York, apesar de se constituir numa clara desordem social, apresenta características atreladas a qualquer sociedade. Existem relações de hierarquia entre os personagens, mesmo todos estando enquadrados na mesma situação de prisioneiros. Nesse aspecto, percebe-se que não há pré-requisitos para que uma sociedade estabeleça, espontaneamente, as relações que haverão entre si. Assim como a sociedade da vida real, a do filme possui suas próprias particularidades.

O aprisionamento do presidente dos EUA, além de ser o principal fio narrativo, constitue-se em uma das metáforas mais importantes de todo o filme. Por ser a figura de maior poder e, de certa forma, o responsável pelas medidas que tornaram a cidade em uma prisão, aprisioná-lo seria a forma mais eficaz de demonstrar que o poder social não está apenas concentrado além dos muros da prisão.

A figura de Snake também representa a fragilidade do governo, já que ele é, também, um prisioneiro e, ainda assim, a única forma para que o resgate do presidente fosse realizado com sucesso. É dessa maneira que se critica a forma como os líderes se impõem sobre a sociedade que teoricamente lidera, mas que nem sempre se deixa ser liderada, e que conquista poder de voz quando decide unir forças em prol de seus objetivos.

John Carpenter, mesmo construindo a narrativa de seu filme baseada em críticas já citadas anteriormente, consegue, com maestria, se distanciar de um aspecto documental e/ou explicitamente filosófico, já que os temas favorecem, em tese, uma aproximação com esses aspectos.

O desenvolvimento narrativo sendo marcado por cenas de adrenalina, com muitos combates físicos entre os personagens, momentos em que há uso de trilha sonora característica do gênero suspense, entre outros aspectos, se mesclam em prol de uma construção narrativa leve e prazerosa.

Por aspectos como estes, Fuga de Nova York se configura como um importante registro audiovisual que se enquadra em discussões acerca do aspecto do entretenimento, como também de uma peça de estudo social. Assim, vale o esforço para se direcionar o olhar para a discussão crítica extremamente relevante presente no filme de John Carpenter.

CRÍTICA: Cosmopolis

Cosmopolis, 2012, David Cronenberg

Por Bia Bruno


Cosmopolis é um filme do ano de 2012, dirigido por David Cronenberg, baseado no livro de mesmo nome, publicado em 2003, de Don DeLillo. 

Eric Packer (Robert Pattinson), um jovem de 28 anos multimilionário, quer ir a uma barbearia cortar o seu cabelo, e mesmo sendo avisado pelo seu segurança particular de que não seria seguro atravessar a cidade, Eric decide que vai de qualquer forma e assim começa a narrativa do filme. Desde esse momento, já é possível perceber a ideia que Cronenberg quer passar com o protagonista: a de um capitalismo poderoso, egocêntrico e sem limites. O filme mostra o declínio pessoal do personagem principal após fazer uma aposta errada na Bolsa e quanto mais tempo passa, mais pobre e mais desestabilizado ele fica; o que faz com que ele comece a quebrar a compostura “gelada” que ele mantém pelo seu status social e tente ultrapassar limites, como os do prazer e da dor.

A limusine branca de Eric, que é usada quase como cenário fixo, onde a maior parte do filme é localizada, é representativa de um mundo só dele, como se houvesse uma bolha o protegendo da realidade, e conforme a narrativa vai se desenrolando, a bolha de Eric vai aos poucos se degradando até estourar. O enclausuramento de Eric na limusine é causador de desconforto ao espectador, principalmente pela escolha de ângulos e planos que o diretor faz; utilizando diversos close-ups para dar a impressão de sufocamento e aperto. 

Cada um dos personagens que vêm a entrar em contato com Eric Packer é um representante da sociedade capitalista, que é ao mesmo tempo fria e calculista, como a sua esposa, Elise Shifrin (Sarah Gandon), e desequilibrada e fracassada, como o personagem de Paul Giamatti, Benno Levin.

Mesmo com uma narrativa linear, é pouco convencional e de difícil entendimento pelos seus diálogos complexos e filosóficos, Cosmopolis requer uma atenção especial para ser compreendido. O filme é tanto uma crítica ao capitalismo quanto uma demonstração do quão volúvel é este sistema econômico e a sociedade regida por ele, dando ao longa um aspecto de crise existencial.

CRÍTICA: O Diabo, Provavelmente

Le Diable, Probablement, 1977, Robert Bresson

Por Bia Bruno


Le Diable, Probablement, lançado no ano de 1977, incorpora perfeitamente o sentimento de sua época: após Maio de 1968, tudo o que era possível no planeta, já foi feito, sentido ou lutado, deixando os jovens desta nova geração com o sentimento de um completo vazio existencial, que nunca poderá ser preenchido com absolutamente nada, fazendo com que, mesmo se relacionando, estes adolescentes não criassem vínculos muito estreitos uns com os outros, ou com qualquer outro ser ou objeto, seja ele material ou imaterial.

O filme representa a mais completa definição do blasé, seus personagens – mais especificamente, Charles, interpretado por Antoine Monnier – foram tão excessivamente estimulados pelas experiências afetivas, intelectuais, sociais, entre outras, da geração prévia a deles que a única solução para esta falta de sensibilidade que sentem para com tudo e todos no mundo é o suicídio. O único momento em que o espectador pode ver algum tipo de emoção transparecer na mise-em-scène dos personagens é quando Alberte, interpretada por Tina Irissari, chora; de resto, são 95 minutos de expressões faciais e corporais quase nulas, deixando ambígua a interpretação de todo o elenco – ou são ótimos atores que conseguiram captar muito bem a indiferença de seus personagens para com a existência na terra, ou são péssimos atores que tiveram muita sorte de participar de um filme que retrata a insensibilidade daquela geração para com o mundo.

Lento e apático e com uma narrativa “zumbi”, Le Diable, Probablement faz com que o espectador entre no corpo destes jovens do final dos anos de 1970, e o quanto mais ele mergulha no universo do filme de Bresson, mais ele também começa a achar que a única solução para a sua vida, é a morte.

CRÍTICA: O medo devora a alma

Angst essen seele auf, 1974, R.W. Fassbinder

Por Vitória Alves


O longa dirigido e escrito por R. W. Fassbinder, um dos principais representantes do Novo Cinema Alemão, é inspirado em “Tudo o que o céu permite” de 1955, filme do diretor Douglas Sirk, que foi uma das maiores influências de Fassbinder, que dedicou a segunda fase de sua cinematografia a filmes com tons melodramáticos, marca de Sirk. 

O filme alemão, como em “Tudo o que o céu permite”, acompanha a relação de um casal. Emmi, que está nos seus 60 anos e Ali, que no máximo está na casa dos 40. Fassbinder, porém, vai mais fundo na questão das diferenças. Ali também é estrangeiro, de Marrocos sai de seu país à procura de emprego, em uma Alemanha que os árabes eram vistos com grande preconceito. 

Independentemente da temática melodramática Fassbinder consegue imprimir na narrativa suas características pessoais. Conseguimos observar elementos peculiares de sua primeira fase, quando a Nouvelle Vague era o movimento que o entusiasmava a filmar. 

A título de exemplo desses elementos peculiares: A interpretação dos atores que até em momentos de grande emoção chega a ser apática. Planos que jamais seriam vistos em um filme clássico. As cenas com um passo mais lento, com longos silêncios. A trilha sonora bem suave, sem dar tons às cenas, diferente do filme de Sirk onde a trilha sonora acompanha as cenas marcantes. 

Entretanto também existem semelhanças nas duas narrativas, como as cores que são bem saturadas, embora não tendo um significado fixo para com os personagens, se faz presente durante todo o filme. Na cena em que Emmi e Ali dançam pela primeira vez eles são banhados por uma luz vermelha que é acesa na pista de dança, uma possível interpretação seria a paixão e o amor futuro. Os reflexos e uso de espelhos também são constantes nas duas histórias.

Fassbinder não mostra soluções para os problemas que são trazidos à tona no longa, ele simplesmente os retrata, sem condescendência. Ele faz o problema ser real, ser visível, esperando a reação do público acostumado com filmes prontos, que se resolvem sozinhos, filmes que não levantam reflexões críticas. E é aí que sua genialidade transparece. A história de Emmi e Ali consegue traduzir perfeitamente essa intenção do diretor alemão.

CRÍTICA: O diabo, provavelmente

Le diable probablement, 1977, Robert Bresson

Por Isabelle Ramos


Um sufocante estilo de vida moderno. Robert Bresson traz em O diabo, provavelmente (1977), o pessimismo de viver na modernidade através de Charles. Diante de uma crise existencial que o assola, não consegue se aprofundar em relações sociais. Tudo ao seu redor o desmotiva.

O longa-metragem traça o percurso de Charles em busca de uma razão para tudo que lhe aflige. Vagando, tentando realizar “qualquer coisa que seja” em busca de algum sentido para continuar a viver uma vida desconexa com os seus anseios ou não-anseios. Até mesmo o estilo de filmagem dá esse tom vago, a câmera que foca em espaços vazios por um longo período pode retratar a falta desse “algo” na vida do personagem. Inserido numa sociedade que agora vive de maneira mecânica e cheia de individualismos, em que se instalou um verdadeiro “mal-estar”, contribuindo para que ele se sinta ainda mais deslocado.

Ao longo do filme, o que se percebe, é a descoberta de Charles, para o que Freud já havia citado em “O mal-estar na civilização”. Apesar de o homem estar sempre em busca de uma felicidade, e apesar de todos os aparatos criados pela modernidade para que essa felicidade seja alcançada, o homem moderno não consegue ser feliz em sociedade, cria-se um ideal de felicidade, mas que não se sabe ao certo como tê-la. Como se o pessimismo, a desordem do “ser” fosse intrínseca a sua existência. Então, tudo que esse “ser” faz, é continuar essa busca incessante e cheia de frustrações.

E é essa busca que Charles, em O diabo, provavelmente, não consegue sustentar. Ele não consegue representar esse “ser” que acredita em um mundo de idealizações. Acreditar que algo vai mudar não faz parte do seu “eu niilista”. O poder, o dinheiro, a tecnologia, a religião e até mesmo o amor faz com que o personagem se sinta infeliz, traçando o destino do personagem para o que o espectador já sabe antecipadamente, a morte.

CRÍTICA: Metrópolis

Metropolis, 1927, Fritz Lang

Por Mariana Brandão


Metáfora da dominação, Metropolis é um ícone dos filmes de ficção e um símbolo cinematográfico da luta de classes, ainda que lançado em 1927. A cidade, o proletariado, a revolução e os governantes são abordados de forma contundente e trazem consigo uma ligação com os tempos atuais de um jeito singular.

Joh Fredersen, poderoso homem que governa Metropolis, cidade que funciona perfeitamente graças ao trabalho árduo de milhares de trabalhadores, tem um filho, Freder, que descobre a condição dos operários na busca por uma mulher que surge inesperadamente nos Jardins Eternos, local onde os filhos dos ricos costumam se divertir (localizado no Clube dos Filhos). Maria, a mulher que Freder procura no mundo dos trabalhadores, cria pouco a pouco, com seu discurso um tanto cristão – por pregar a vinda de um mediador para tirá-los daquela vida miserável –, a esperança de uma revolução do proletariado, levando-os a confiar plenamente nela, a única chance de melhoria de vida que eles têm.

Além da busca de Freder, Metropolis também é cenário da invenção de uma mulher-robô pelas mãos do “cientista louco” Rotwang, que seria, primeiramente, a cópia de Hel, a mãe de Freder, falecida esposa de Joh e amante do inventor, mas torna-se, pela necessidade do poderoso governante, aquela que vai destruir a esperança dos trabalhadores.

O enredo não seria possível sem uma paisagem que favorecesse o desenvolvimento da história: uma cidade movida pelas máquinas, com tantas construções imensas, carros e aviões circulando, que segrega os trabalhadores do restante da sociedade. Há, portanto, uma clara imagem da cidade industrializada e desenvolvida que, apesar de sê-la, se fundamenta no trabalho exploratório de homens, cujos moram bem abaixo da terra, separando o mundo evoluído da miséria daqueles que o sustentam.

A cidade dos operários é um imenso complexo de edifícios, que mais parecem cubículos empilhados – fato acentuado pela iluminação do cenário –, bem abaixo da terra, representando, portanto, a segregação daqueles que trabalham e sustentam a cidade dos burgueses e ricos que reinam em cima. Lá, o único lugar de uso comum é um espaço onde existe uma sineta de alerta, configurando assim a falta de interação até mesmo entre os trabalhadores, que parecem uma massa de máquinas programadas para servir e se confundem com as reais máquinas que eles mesmos operam. Essa representação do proletariado é bem semelhante ao que Charles Chaplin vai retratar em Tempos Modernos (1936), com sua ironia e comédia, onde os trabalhadores são submetidos ao regime extremamente exaustivo de uma tarefa repetitiva.

A verticalização da cidade ocorre tanto na instância dos mais ricos, aqueles que estão em cima da terra, com suas grandiosas construções e “espaços públicos” – o Clube dos Filhos, por exemplo –, como também no proletariado submisso, que mora nos cubículos empilhados abaixo da terra. Entretanto, é possível encontrar uma figura que representa um contraponto a essa arquitetura da cidade, uma casa isolada, que não pertence ao contexto de Metropolis e, portanto, faz sentido que Rotwang, o cientista que vive à margem da sociedade, compenetrado nos seus estudos e invenções, seja o morador desse lugar. É o único momento do filme que é possível ver alguma construção que não é grandiosa ou vertical.

O personagem de Rotwang também simboliza a ascendente tecnologia, visto que ele cria uma mulher-robô, que seria capaz de guiar os homens no futuro, mas acaba sendo um objeto de manipulação das massas revoltadas.

Além do enredo e do belíssimo cenário, é preciso mencionar a direção de arte de Metropolis como um importante e bem feito trabalho. Para mostrar a cidade e sua verticalização, as técnicas de iluminação, produção e fotografia são dignas de tal grandiosidade bastante citada. Essa paisagem bastante atual, mas idealizada em 1927, foi fruto de um trabalho detalhado em estúdio e maquetes, trazendo a realidade futurística de forma extraordinária.

Portanto, é possível dizer que a arquitetura desenhada para ser cenário dessa narrativa estabelece e facilita a manipulação de certa parte da sociedade, aquela que é responsável por seu funcionamento, mas ainda assim não é valorizada, instituindo o medo como uma arma de controle para manter certas pessoas em cima e outras em baixo.

CRÍTICA: A mulher sem cabeça

La mujer sin cabeza, 2008, Lucrecia Martel

Por Lorena Fragoso


A noção de que o sentimento de culpa é sempre nocivo para quem o possui faz parte do senso comum. Segundo Freud, em “O mal-estar da cultura”, o sentimento de culpa é uma “variação topográfica da angústia”. Tal angústia, quando atrelada à dúvida de não saber o que realmente aconteceu, abala a sanidade do indivíduo a ponto de levantar questionamentos constantes sobre o que si mesmo e sobre o que é real ou não.

Essa é a situação apresentada por Vero, protagonista do filme de Lucrecia Martel, lançado em 2008. Após um acidente que a faz passar por cima de algo/alguém no meio da estrada, a personagem parece realmente perder a cabeça diante da confusão que se passa dentro de si, sem saber se atropelou um animal ou um ser humano. O papel estrelado por Maria Onetto reflete uma mulher perdida, que acaba por esquecer o número do seu escritório e até mesmo a sua função no trabalho, quando chega ao consultório onde trabalha como dentista e pensa ser apenas uma paciente, entre outras situações onde demonstra não estar consciente de si e do que acontece em sua volta. Tendo como base a ideia de que o espectador se personifica e se vê refletido em personagens diante de certas situações, durante todo o filme o sentimento de culpa e de dúvida é transferido para quem o assiste. Logo após o acidente, a câmera mostra um corpo estirado no chão, aparentemente de um animal que pertencia às crianças mostradas previamente brincando naquele mesmo lugar. O espectador, convencido daquilo que viu, passa a duvidar de si mesmo quando Lucrecia Martel faz um trabalho brilhante de suspense crescente, revelando lentamente informações que de alguma forma estão interligadas ao acidente. A tensão é intensificada na mesma proporção da angústia sentida pela personagem.

A atenção da diretora aos detalhes enriquece a história em níveis absurdos. Dentro do carro de Vero, antes do acidente acontecer, é possível enxergar a marca de uma mão de uma criança que tem destaque no vidro devido ao ar empoeirado da estrada. Após o acidente, a marca daquela mão é substituída por outras duas, posicionadas como se estivessem estendidas. Além disso, durante todo o filme é possível perceber que Vero está sempre em evidência enquanto os acontecimentos ao seu redor, seja em cenas onde ela está no plano de fundo ou à frente de outros personagens, estão sempre desfocados, simbolizando exatamente como ela está se sentindo naquele momento. Perdida. Sem foco. Também é válido destacar a presença freqüente de cenas onde a fotografia enquadra a personagem apenas dos ombros pra baixo, como se ela realmente estivesse sem cabeça; destacando-se aqui a cena onde Vero observa angustiada pela janela quando o seu marido retira a carcaça de um animal de dentro de casa.

Lucrecia Martel nos dá um leque de reflexões e dúvidas como se nós mesmos fôssemos cúmplices daquele roteiro, daquela história. O espectador se vê tão imerso na inquietude quanto Vero, que ao final do filme tinge seus cabelos de outra cor simbolizando um novo momento de sua vida, onde tudo aquilo foi deixado pra trás. Entretanto, o filme deixa em aberto todas as perguntas que foram feitas: não se sabe realmente o que aconteceu naquele acidente; de quem ou de quê era o corpo estendido na estrada. Não se sabe se a noite vivida no hotel após o acidente realmente aconteceu ou foi apenas um delírio, especialmente pelo jogo de luz utilizado onde o seu cunhado está frequentemente em meio às sombras. Perdemos a cabeça junto com Vero e seguimos em frente ao vermos a tela escurecer, igual aos seus cabelos, deixando pra trás toda a culpa e responsabilidade que aquela história nos trouxe. 

CRÍTICA: Mad Max: Estrada da Fúria

Mad Max: Fury Road, 2015, George Miller

Por Mariana Brandão


Insano. Foi a primeira coisa que pensei quando os créditos de Mad Max Estrada de Fúria começaram a subir. Um filme completo, com emoção do primeiro ao último segundo, dialogando com a força da presença feminina na sociedade atual, com uma atmosfera ligada aos antigos filmes. Max Rockatansky segue à procura de sua redenção e é disto que o filme trata: a busca em compensar os erros do passado.

É inevitável sentir o desespero de Max em relação ao seu passado no início do filme, quando se apresenta ao espectador. Os fantasmas daqueles que ele deixou de salvar atormentam sua jornada, sendo um fardo a todo o momento. Entretanto, apesar de ser o personagem que dá nome ao filme, e a toda a sequência, Max parece ser apenas um coadjuvante, enquanto a saga retratada na história é a da Imperatriz Furiosa, mulher forte e significativa para Cidadela, único lugar num planeta pós-apocalíptico em que há uma chance de viver – fato esse que é essencial para a resolução da trama. Contudo, se enganam os que pensam que Mad Max Estrada da Fúria é a história de Furiosa, quando é, na verdade, a jornada de redenção de Max e, por conseguinte, de Furiosa.

O que talvez tenha me deixado mais impressionada, além do conjunto do filme em si, foi o cuidado de tratar a trilha sonora como um elemento diagético poderoso para identificar certos momentos na trama. A guitarra e os tambores tocados por seres "meia-vida", que acompanham as máquinas de guerra durante as perseguições, dão um aviso de que os guerreiros estão chegando. Até mesmo é acentuada quando o ápice das batalhas surge, intensificando a emoção do filme. De fato, o “meia-vida” que toca guitarra tornou-se um ícone cômico da obra, pois, com uma grande perseguição acontecendo e uma enorme matança, quem iria se preocupar em tocar música?

Com o roteiro bem construído, organizando narrativamente e trazendo elementos que vão ajudar os personagens em certos momentos da história, e com uma linearidade essencial para um filme de ação, é possível perceber todos os pontos de virada importantes, já que são bem delineados, assim como o propósito de cada personagem e suas ações. O sensacionalismo digno de blockbuster fica por conta das grandes explosões, amplos cenários – o filme foi gravado no deserto Namib, no sudoeste africano –, que lembram até mesmo os filmes do gênero Western, tanto na fotografia como no tema (a perseguição, nesse caso), e o romance (tosco) que se desenrola no meio da obra – protagonizado por Nicholas Hoult, conhecido por seus papéis de jovem em crise como em Meu namorado é um zumbi e Skins, na pele de Nux –, mais como uma tentativa de dizer ao espectador que ainda existe amor entre aquelas pessoas em condições sub-humanas.

Ainda com todas suas boas características, Mad Max Estrada da Fúria tem seus momentos clichês, como na cena em que Immortan Joe pega seu carro e dirige em busca de uma das suas esposas. A cena é, basicamente, um plano marcando a face de Immortan, com um rápido zoom in na partida do veículo: clichê que lembra filmes como os clássicos hollywoodianos, com cenas frontais do motorista no carro, mas com um toque de ação de filmes como Velozes e Furiosos.

Alguns podem até destacar a importância dada à Imperatriz Furiosa, chamando o filme de feminista, mas não acredito que chegue a ser uma apologia. Dentro do universo do enredo, as mulheres férteis são os bens mais importantes, juntamente com a água ("Não se tornem viciados em água, vocês sofreram na ausência dela"), o que faz de Furiosa uma das personagens centrais, já que é ela quem vai se arriscar a contrariar Immortan e salvar as mulheres. Destacaria, portanto, a força da presença feminina no filme, revelando a importância do gênero para a sociedade e até fazendo uma reflexão de como elas estão sendo tratadas atualmente. Furiosa se tornou uma das minhas personagens favoritas e uma inspiração de fato.

Para quem tiver chance ver em 3D e IMAX: vá. Apesar de o filme ser igualmente bom sem esses recursos, a experiência se torna mais intensa com eles. Definitivamente um dos melhores filmes do ano e uma obra excepcional de George Miller, que há tempos planejava uma continuação para a sequência, mas vários obstáculos lhe impediram de conseguir. 

Mad Max já é uma das maiores bilheterias do cinema e, não por isso, mas sim pelos motivos acima escritos, vale a pena ser visto.

CRÍTICA: O amor é mais frio que a morte

Liebe ist Kälter als der Tod, 1969, Rainer Werner Fassbinder 

Por Lorena Fragoso


Em seu filme de estréia, Rainer Fassbinder trata das relações pessoais da maneira mais fria que o pós-guerra poderia oferecer: rostos que não sentem, não se expressam; corpos que vagam em piloto automático realizando ações sem esperar por reações.

A história acompanha Franz, personagem interpretado pelo próprio Fassbinder, um bandido que trabalha por conta própria e é requisitado por um sindicato de criminosos. Recusando o convite em prol de sua autonomia, conhece Bruno, membro do sindicato que recebe ordens para segui-lo. Bruno o encontra escondido com sua noiva, Joanna, uma prostituta que acaba por participar de roubos a lojas comerciais, bancos e missões de assassinatos com os dois. O triângulo que, de amoroso, não possui nada: o relacionamento de Franz e Joanna é distante, onde em nenhum momento se vê nenhum sinal de afeto ou desejo presente. Ao deitar-se no chão e ter sua cabeça desabotoada por Bruno, Franz se ofende com a risada que a sua noiva dá, sentindo que ela envergonhou o seu amigo e esbofeteando-a no rosto como punição.

Os olhos dos personagens estão, na maioria do tempo, cobertos por óculos escuros, como se os acessórios fossem parte do fardamento do seu trio fora-da-lei. Seus sorrisos são inexistentes, sendo substituídos por cigarros, muitos cigarros na boca dos personagens. Matam, roubam e são postos em situações de risco na maior naturalidade e tranqüilidade possível, carregando rostos vazios e expressões corporais rígidas sintetizando a frieza de sua realidade. O tom de monotonia contido nos personagens se faz ainda mais presente no filme do filme, onde segundos parecem minutos e muitas cenas são tomadas por silêncios e atitudes naturais, como um longo take onde o trio caminha ou quando os personagens simplesmente fumam e manuseiam suas armas como se nem percebessem suas próprias existências.

O filme teve baixo valor de produção, possuindo locações simples com direção de arte mais simples ainda. O figurino do personagem de Fassbinder é o mesmo do início ao fim, tendo a imagem do bandido autônomo Franz refletida em sua jaqueta de couro e calças justas. Joanna é a que mais tem variedade em suas roupas, e ainda assim só possui três figurinos distintos; enquanto Bruno parece ter sido retirado de um filme noir, comum chapéu e um sobretudo negro que lhe dão um ar de detetive. O que se destaca, de fato, é o que o diretor foi capaz de fazer com tanta simplicidade, dando ênfase a planos simétricos e bem enquadrados e uma fotografia que consegue transformar atitudes banais do personagens em belas retratos sobre a frieza que pode existir nas relações humanas.

Por mais que lento que o ritmo do filme seja, é de se admirar a competência estética inovadora de Fassbinder que, com uma matéria bruta simples, conseguiu transformar em obra-prima um dos filmes mais importantes do Novo Cinema alemão. 

CRÍTICA: Saló ou os 120 Dias de Sodoma

Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975, Pier Paolo Pasolini

Por Mariana Brandão


Nada é somente aquilo que se vê. É preciso perceber as entrelinhas e os pequenos detalhes da obra para entendê-la integralmente e discutir tanto sobre o contexto, como sobre seus realizadores e a mensagem transmitida. Na transposição de sentidos para uma produção cinematográfica, Pasolini tem maestria em retratar o momento histórico e as motivações humanas em sociedade, principalmente ao abordar um tema polêmico como em Saló ou os 120 Dias de Sodoma.

Inspirado no romance 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, escrito em 1785, Pasolini retrata a história de um grupo de fascistas que sequestram jovens e submetem os rapazes e moças à violência, tortura, abuso sexual e as mais estranhas perversidades. A história ocorre entre 1944 e 1945, durante a ocupação nazifascista no norte da Itália, especificadamente em Salò – cidade conhecida pelas crueldades que aconteceram no regime de Mussolini –, tendo assim uma conexão com o tema implícito, mas principal, da obra: o poder.

Ao iniciar o filme com uma distinção de títulos dos quatro homens protagonistas da película, é possível entender o nível hierárquico em que aquelas pessoas estão e, consecutivamente, apreender a representação de poderes – econômico, religioso, judicial e nobreza – que o realizador propõe, já levando em consideração que tais personagens são quem pregarão o sofrimento e humilhação nos dias seguintes.

Até então o filme não provoca tanto estranhamento como nas cenas seguintes, que são essencialmente bizarras, principalmente pela naturalidade em que os personagens ditos poderosos assistem à submissão e tortura dos sequestrados. É preciso ter estômago para enfrentar sequências de coprofagia e sadismo sem deixar o olhar escapar da tela.

Vale a pena observar a separação do filme em partes: Antes do inferno, para retratar a introdução aos atos de abuso, com a captura dos jovens; Círculo de manias, com a apresentação dos desejos sexuais, iniciando a metáfora da submissão e o poder; Círculo das fezes, quando os submissos jovens são obrigados a ingerir fezes, trazendo a alusão à indústria do consumo; E círculo de sangue, momento em que as torturas sanguinárias acontecem. A opção dessa divisão tem reflexo nos diferentes temas abordados em cada parte, como por exemplo, na segunda, quando os jovens são tratados como animais, cujos “donos” mandam-nos comer a refeição jogada ao chão, ou o casamento forçado.

A película dá a impressão que é o sistema social e econômico que está falando com o espectador, dizendo-lhe o que é para comer e como agir – fato favorecido pelo posicionamento da câmera, que age majoritariamente de modo distante dos personagens, até mesmo imparcial –, submetendo-o a um regime totalmente abusivo aos instintos básicos humanos. Posso chegar a dizer que esse é o motivo pelo qual o filme é tão pesado e indigesto para certos olhos.

O sexo na obra é uma relação entre poder e submissão, como afirma Pasolini num documentário feito por Amaury Voslion. O sadismo exposto na tela significa o controle do corpo humano e a redução desse corpo em objeto, ou seja, a essência humana torna-se apenas uma “coisa” com os adventos do consumo, capitalismo e valorização do poder. Tal poder que aliena e estipula um falso valor em tudo. Pela ênfase na submissão social a partir do poder, trazendo traços econômicos, o discurso de Pasolini chega a ser marxista.

Há também uma identificável subversão da ordem de causa e consequência, como por exemplo, no concurso de cu mais bonito, o ganhador teria a recompensa da morte. “Você deve ser estúpido ao pensar que a morte seria tão fácil assim. Você não sabe que pretendemos matá-lo milhares de vezes? Ao fim da eternidade, se é que a eternidade tem um fim.”, responde um dos protagonistas ao final da cena. O discurso de Pasolini em relação a essa oposição está representado em situações como a citada, mas também imageticamente, com o frequente contraste entre corpos nus e exuberantemente vestidos, e na fala dos personagens, às vezes profundas demais, com citações a Barthes e Simone de Beauvoir, ou rasas demais, como as poucas palavras da pianista – que, aliás, tem olhares marcantes nas cenas e, ao ver tudo o que lhe circunda, suicida-se.

Devido à escolha comum de Pasolini por atores amadores, a atuação dos jovens é visivelmente forçada, mas acaba por dar um tom inocente e singular a esses personagens. O gosto por diálogos complexos não abandona essa película, entretanto o autor consegue incorporá-los na narrativa de forma menos cansativa, como na contação de história das senhoras prostitutas.

Um dos filmes mais polêmicos da história, por seu conteúdo de sexo, sadismo e violência explícita, Saló ou os 120 Dias de Sodoma chocou plateias inteiras no seu lançamento e foi proibido em vários países. Ainda que essa recepção fosse prevista, ou não, o autor mostrou, mais uma vez, sua capacidade de fazer crítica política, social e religiosa como ninguém. Alguns dizem que sua morte, ocorrida pouco tempo depois do término da filmagem, foi um reflexo dessa reação a sua postura crítica. Pasolini pensava sobre sua época com os olhos abertos e sem ter medo de comprometer-se.

CRÍTICA: Um Lugar ao Sol

Um Lugar ao Sol, 2009, Gabriel Mascaro

Por Isabelle Ramos


Com a proposta de filmar o universo da elite brasileira, em especial, dos moradores de coberturas das cidades do Rio de Janeiro, Recife e São Paulo, Gabriel Mascaro, nos mostra em seu documentário, Um lugar ao sol (2009), as perspectivas e um pouco do cotidiano dessas famílias que detém um poder aquisitivo muito além do resto da sociedade. O discurso se permeia pela fala dos moradores a respeito de certos pontos como, segurança, poder, realização pessoal, e mais outros temas diversos, que não se incluem no cotidiano de uma parcela significativa da população, nos fazendo abrir nossa visão de campo para o abismo social que se faz presente em nossa sociedade, diante das diferenças que separam esses entrevistados dessa outra parte da população.

Os jogos de cena propiciados pela montagem dão certa abrangência ao filme para tocar na temática da verticalização dos centros urbanos, que tem sido uma das soluções das construtoras para atender a demanda do mercado imobiliário, em virtude do crescimento populacional, e uma forma de lucrar cada vez mais. “Viver nas alturas” parece ser eficaz para fugir dos dramas urbanos, como a insegurança gerada pela violência. E as coberturas simbolizam uma nova era de verticalização da cidade, uma forma de pensar a arquitetura para amparar o medo dessa violência, além do status que seus moradores buscam, e nesse caso, o distanciamento do “resto” da população, que não está dentro da realidade econômica que os entrevistados têm. 

E essa é a noção que está presente no documentário, no discurso de busca de cada morador em ter um lugar seguro, que se assemelhe a uma casa, espaçoso, porém enclausurados em um amontoado de “caixotes”, e com a necessidade de se distanciar da vivência “perigosa” na cidade. Buscando uma moradia privilegiada, buscando um “olhar de cima”, sem ver as mazelas da cidade, com suas desigualdades de perto. Esse é um ponto bem colocado na fala “ver o lado bonito do Rio de Janeiro”, o olhar elitista e sem preocupação que a entrevistada, que mora no Rio, lança sobre a troca de tiros entre “gangues” da favela próxima ao prédio em que reside e chama de “fogos de artificio” as balas que cruzam a sua vista favorecida e distanciada da realidade. Ela acaba não enxergando a situação como um mal, pois não lhe atinge diretamente. Reconhecendo seus privilégios, falam de assaltos, assassinatos que acontecem perto deles, mas por estarem em um “nível acima” “protegidos”, não os angustia, e sentem-se seguros, pois esses males não invadem a sua zona de conforto. A cobertura para eles é como uma ilha. Uma ilha em um prédio/edifício com segurança própria em cada andar.

Apesar das particularidades, vemos relatos que se tocam, existe sempre a mesma relação de segurança/conforto/fuga e de certa alienação para com o “mundo lá fora”. A narrativa que se cria com o discurso dos entrevistados é livre. Apesar de aparecer como mediador e realizar as perguntas, e apesar de, na hora da montagem, não explicitar no filme a maioria delas, Mascaro dá liberdade para que cada indivíduo fale suas experiências como bem entender, sem manipular ou coagí-los. E o que percebemos é um documentário preenchido de discursos mesquinhos, e pessoas que por viverem tão “distante” do quadro problemático das cidades, não conseguem enxergar o outro lado, e não querem deixar de viver dentro da “bolha”. Falas que desenham um caráter individualista, arrogante, preconceituoso e que por vezes beiram o ridículo.

Sendo notório que Gabriel Mascaro favorece o clima para as narrativas se desenrolarem, é válido ressaltar que, todos os entrevistados tem plena responsabilidade pelo que falam. Temos também pontos destoantes desse individualismo nas falas de alguns deles, como a francesa que gosta de estar no “meio do povo” e a moradora que reconhece suas vantagens e consegue enxergar para além do seu próprio mundo quando relata a sua vida como voluntária. No entanto, rapidamente voltamos para o discurso elitista, como com o relato do empresário dono de uma boate que afirma “nos aviões, há a primeira classe, a segunda e a senzala”, sem o menor respeito e como uma forma de desprezo pelas camadas sociais que não detém o mesmo privilégio que ele.

Um lugar ao sol traz logo de cara uma proposta curiosa para o documentário, falar sobre banalidades das vidas dessas pessoas para tratar de disparidades sociais, colocando Mascaro num patamar pouco explorado pelo gênero. Pessoas que não vivenciam a cidade, pois estão cercados no seu próprio mundo, abismos sociais, medo do que vem de fora, nesse caso, em especial, do que vem de baixo. Projetados numa arquitetura que protege o indivíduo do meio social, do meio urbano, por projetarem seus medos nesses universos. Criando mundinhos particulares, dão tom e força para que essas diferenças cresçam ainda mais na nossa sociedade.

CRÍTICA: Estranhos no Paraíso

Stranger than Paradise, 1984, Jim Jarmusch

Por Isabelle Ramos


Uma juventude um tanto perdida e com apatia pela vida. Assim Jim Jarmusch constrói o seu longa-metragem, Estranhos no Paraíso. “Dividida” em três “partes”, a narrativa se desenrola com a chegada de Eva, uma jovem húngara, a casa de seu primo em Nova York e a apatia dos personagens fica desde então evidente, o desânimo do primo, Willie, para com a presença da sua prima e a explícita preguiça de Eva para lidar com a situação que acabara de se formar, constroem um palco para a apresentação de dois estranhos, entre personagem x personagem e entre personagem x espectador.

“Novo mundo” está permeado de diálogos enfadonhos, e de um silêncio que preenche as cenas, apesar dos personagens estarem sempre juntos e trancafiados em um apartamento. Seus cortes repentinos na filmagem, numa provável influência do cinema underground, seguidos de uma demorada tela preta, dão o tom a “não profundidade” desses diálogos, como se não importassem para o filme, de fato. O que temos de significativo são sequências do cotidiano de Willie, que está durante todo o longa-metragem preocupado em se firmar como cidadão estadunidense, num jogo só para sua própria satisfação e reconhecimento por coisas banais. A insistência para que falem somente em inglês com ele e as constantes exaltações de elementos americanos configuram essa necessidade.

Ainda na primeira parte, temos a chegada de outro personagem, Eddie, que parece ser um elemento destoante da rotina enfadonha de Eva e Willie, mas que se deixa tomar pela construção dessa frieza e passa a ser só mais um elemento estranho dentro do desenvolvimento do filme. Em seguida temos a partida de Eva para Cleveland, seu destino inicial, a casa de sua tia Lotte. O filme, então, segue para uma espécie de “novo começo”. Com a passagem de um ano, na próxima divisão “Um ano depois”, após ganhar uma grande quantia em dinheiro, Willie e Eddie parecem ansiosos a quebrar aquela rotina tediosa quando decidem ir a Cleveland visitar Eva.

No entanto, as sequências apresentam os personagens num mesmo teor apático. O trabalho de Eva, a estada na casa da tia Lotte, a ida ao cinema, a ida ao lago que está congelado, o tédio é inerente. Jarmusch elabora uma filmagem da cidade que se apresenta inativa. Mesmo em Nova York, não há aparição de pontos estratégicos que mostre a diferença dos lugares, “tudo continua igual” é afirmação de Eddie diante do cenário construído. E mais uma vez decidem partir aquele cotidiano ao meio.

Em “Paraíso”, última “parte” do filme, Willie e Eddie decidem ir a Flórida atrás de um pouco de diversão. "Praias brancas, mulheres de biquínis, Miami beach" parece para ambos uma fuga da monotonia. Decididos a partir e levar Eva com eles, vemos o trio juntos novamente, mas, mais uma vez estão presos num quarto, estranhos entre si, entediados, buscando uma alternativa pra mudar de vida, enquanto Willie pensa em ganhar mais dinheiro, Eva, agora, é o centro dessa languidez, que outrora tinha sido de Eddie. “Pensei que iríamos a Miami” “isso aqui é o quinto dos infernos” constata a personagem, decepciona com o quadro imposto. No final, quando Eva forja sua ida para Europa, temos uma sensação de mudança na vida de todos os personagens, mas, o contexto se encerra da mesma maneira. Apesar das oscilações, dos dramas particulares a cerca de uma mudança, quando Eddie e Eva expõem sua insatisfação, o monótono continua ali, mas agora temos personagens solitários, amargando em sua apatia. 

Dada as construções de personagens que não estabelecem relações, cenários “iguais”, diálogos secos, o que se vê a partir de então, é o desenvolvimento interessante que o diretor, Jarmusch, e os atores dão ao que viria ser uma rotina banal. Apesar da tentativa de mudar de vida, os personagens “andam em círculos” O filme se amarra de forma concisa a sua proposta, e o que poderia nos parecer chato, acaba criando uma aura própria, cheio de personalidade. A filmagem em preto e branco, a escolha de apenas uma música como trilha sonora, que Eva sempre coloca em seu rádio para tocar, os diálogos banais, combinam com a construção europeia do que se tratava de um cinema independente norte-americano em que Jarmusch se inseria. Sem apelos clichês e fora dos padrões comerciais americano.

CRÍTICA: Dois Lados do Amor

The Disappearance of Eleanor Rigby: Them, 2014, de Ned Benson

Por Evandro Lira

Beira ao assustador pensar no tamanho do poder que exercemos uns sobre os outros todos os dias. E quando escolhemos alguém para viver ao nosso lado no que gostamos de chamar de “para sempre”, esse poder é ainda maior. É tocando nessas questões inerentes ao ser humano que The Disappearance of Eleanor Rigby (no original) descarrega sobre o espectador o peso que uma relação suporta e leva consigo depois que uma tragédia se abate sobre ela. É sobre como lidamos com nós mesmos e com quem amamos depois que esse poder involuntário modifica gravemente nossas vidas.

A maneira como o estreante Ned Benson resolveu contar essa história é no mínimo fascinante. A princípio dois filmes foram lançados no Festival Internacional de Cinema de Toronto em 2013, com os subtítulos Him e Her. Eles narram uma mesma trama sob perspectivas diferentes. Em um é possível acompanhar a vida de Conor após o rompimento com a esposa Eleanor, e no outro conhecemos a história da mulher, que não é mais a mesma depois de tudo o que ocorreu. Em 2014, estreou na sessão Un Certain Regard do Festival de Cannes a versão Them, que com um apelo mais comercial visa unir os dois filmes, ampliando a visão do espectador para ambos os protagonistas, e fazendo da obra não só um exemplo de roteiro bem construído como um eficaz exercício de montagem.

Mesmo com dois longas diferentes que exploram profundamente seus protagonistas, Them é autossuficiente. Assistir à somente ele não prejudica o entendimento e nem mesmo subtrai a singularidade da produção, que em duas horas dá espaço para o casal principal e ainda para seus coadjuvantes. Isso não quer dizer, no entanto, que o espectador não sinta a necessidade de adentrar ainda mais no mundo melancólico daqueles personagens. A opção de ver a trilogia não deve ser descartada. E caso seja essa a escolha do leitor, o mais recomendável, sob meu ponto de vista, é assistir na ordem Them, Him e Her, já que os dois últimos revelam cada um cenas inéditas do que foi visto em Them e também pela complexidade e motivações de Eleanor Rigby, que se tornam muito mais compreensíveis e cristalinas quando digeridas dessa forma.

Aliás, os personagens são o que mais impressiona em Dois Lados do Amor - nome esse que como se não fosse brega o suficiente, ainda camufla o brilhante título original. Parte da grandeza que transforma os personagens de The Disappearance em pessoas tão verdadeiras deve-se ao roteiro de Benson, que tem uma visão delicada e ao mesmo tempo cruel sobre as relações humanas. Seus intérpretes não ficam de fora, extraem com maestria do script toda a força, anseios e frustrações dos seus personagens, assim como o trabalho de direção de arte, chefiado por Kelly McGehee, que compõem os ambientes com a mesma sutileza e realismo que o filme preza do início ao fim.

É incrível que mesmo com pouco tempo de tela, os atores coadjuvantes dão um show em cena. Impossível não gostar imediatamente da professora vivida por Viola Davis, uma mulher prática e espirituosa que, assim como todos os personagens secundários, exerce uma força única na personagem principal. Simpatizamos com a amizade de Eleanor e sua irmã (Jess Weixler), de Conor com seu sócio (Bill Hader); e com a densidade das relações paternas, um Conor abalado, um pai (Ciarán Hinds) igualmente exausto de relacionamentos, uma Eleanor traumatizada com tantas perdas, e seus pais, que são totalmente diferentes um do outro, interpretados por Isabelle Huppert e William Hurt.

O casal principal é vivido por dois astros de Hollywood em ascensão: James McAvoy, que atualmente estrela a franquia da Fox, X-Men; e Jessica Chastain, duas vezes indicada ao Oscar por Histórias Cruzadas (2011) e A Hora Mais Escura (2012). Em The Disappearance of Eleanor Rigby, ele é Conor Ludlow, dono de um restaurante falido, filho de um homem bem sucedido nos negócios, e ela é a Eleanor Rigby do título, interessada por artes, filha de um acadêmico e de uma imigrante francesa. Somos apresentados aos dois logo na primeira cena, numa sequência divertida, a clássica fuga do bar sem pagar a conta. Exatamente nessa cena já nos encantamos com os personagens, “Você ainda me amaria se eu não pudesse pagar o jantar?”. Uma mise-en-scene cuidadosa e realista fica perceptível logo nesse primeiro plano, ambos os atores bem à vontade, sem pressa para dar as falas, sem excessos, fazendo até lembrar a naturalidade de Jesse e Celine da trilogia Before, de Richard Linklater.

E em seguida, tudo aquilo simplesmente havia desaparecido. Uma elipse nos coloca a par de uma Eleanor suicida e de um Conor machucado, estressado e perdido sem sua esposa. Aos poucos, a trama inteligente vai nos ajudando a montar as peças do quebra-cabeça, afinal não foi um simples rompimento, Eleanor tinha tentado se matar e agora estava totalmente afastada, evitando cruzar, falar com e sobre seu marido.

Jessica Chastain está deslumbrante. Entrega uma personagem complexa, forte e sensível ao mesmo tempo. Eleanor Rigby não é uma pessoa solitária, como canta a música dos Beatles da qual seu nome foi inspirado. Ela tem amigos, tem família, mas simplesmente não consegue e nem quer ser ajudada por nenhum deles. Uma verdadeira fortaleza, não verbaliza seus sentimentos, espera que você os adivinhe, “Gostaria que você pudesse ler meus pensamentos”, chega até a dizer. Mas é graças a Jessica Chastain que nos envolvemos e passamos a entender o incompreensível. Seu olhar revela a dor, seu silêncio provoca.

Por sua vez, James McAvoy está seguro e apaixonante em cena. Conor está sempre assumindo o problema para os outros, ainda que não o verdadeiro, aquele que levou ao afastamento do casal. Tenta estabelecer contato com Eleanor constantemente, mas ela o afasta e isso só deixa os dois cada vez mais despedaçados.

Durante toda projeção entendemos que os personagens sabem mais. O roteiro não faz questão de esconder isso, vez outra ele dá pistas, mas sem pressa e sem nenhum diálogo expositivo. Os diálogos são uma maravilha à parte, cada frase dita, cada silêncio de interrupção e de reflexão é um espelho do espectador que se vê afetado pela melancolia das palavras.

Melancolia caracteriza bem The Disappearance of Eleanor Rigby. Desde sua composição sonora, marcada pelo som alternativo do americano Son Lux, até a bela fotografia de Christopher Blauvelt, que quando não põe Eleanor numa profusão de sombras, deixa-a complementar-se ao cenário, com seus cabelos ruivos se inteirado às cores quentes sempre resfriadas.

É possível notar até mesmo um certo apreço do diretor pela cultura europeia. Os Beatles estão no título do filme, no nome da protagonista, na parede do quarto de Eleanor, e aí você pensa em como isso poderia ficar brega e forçado, mas não, tudo nessa obra soa casual, natural, é de um realismo impressionante e formidável como tudo se encaixa. Há ainda na parede do quarto de Eleanor o pôster de Um Homem, Uma Mulher (1966) de Claude Lelouch, um filme encantador que também conduz uma história de luto e relacionamento. A escalação da musa francesa Isabelle Huppert como mãe de Eleanor, que por sinal está excelente, vem para ratificar essa teoria. Até me atrevo a dizer que há uma certa aura do bom cinema francês aqui.

Engana-se quem acha que ao final de The Disappearance of Eleanor Rigby: Them vai obter todas as respostas que procurou e que todos os problemas serão resolvidos. A obra é muito mais vida real do que parece, onde às vezes as soluções não vem de forma fácil, ou nem mesmo vem. Dono de uma densidade impressionante, te deixa com uma sensação de vulnerabilidade. Afinal somos uma sociedade que ama, e pensar que esse motor que nos conduz, o amor, nem sempre é o suficiente para determinar nossa felicidade, é desolador.

CRÍTICA: Vereda Tropical

Vereda Tropical, 1977, Joaquim Pedro de Andrade

Por Tiago Lima


Se nos ativermos à visão atual do gênero cômico, especificamente no Brasil, perceberemos que há uma constante tentativa de se conquistar o riso através de recursos um tanto quanto apelativos. Mesmo que nem todas as produções se enquadrem nessa variante, é claro que tal tendência existe, sendo principalmente acarretada pela dificuldade já intrínseca ao próprio gênero comédia de se construir um enredo simples, inteligente e sem muitas “firulas”.Há algumas décadas atrás, Joaquim Pedro de Andrade produziu uma pérola do cinema brasileiro e da comédia. O curta-metragem “Vereda Tropical” seria considerado uma verdadeira bomba nos dias atuais – e à época de seu lançamento, no ano de 1977, ainda mais, sendo inclusive censurado pela ditadura militar – pelo fato de ser tão simples do ponto de vista narrativo e de execução. Uma verdadeira aula de humor aos que acreditam que há de se apelar para arrancar risos de uma plateia.O personagem central é um homem comum, porém com gostos peculiares. Já nos primeiros minutos, percebe-se que seu olhar e intenções para com a melancia que carrega debaixo do braço, enquanto pilota sua bicicleta, são diferentes do de uma dona de casa ou de um mero apreciador de frutas. Ao simular – ou praticar, de fato - o ato sexual com a melancia, o protagonista torna claro que o que o encanta e atrai na fruta é o que encanta e atrai qualquer outra pessoa provida de uma libido sexual, porém de uma forma exótica e estranha à natureza humana.A partir disso, as discussões acerca do comportamento do personagem se desdobram em muitas. O fato de manter “relações sexuais” com uma fruta seria reflexo de uma vida solitária, de algum tipo de transtorno ou simplesmente uma escolha consciente e que o agrada, sem se fazer necessária nenhuma explicação psicológica ou científica? Talvez essa oportunidade de se discutir a narrativa seja o principal fator que diferencia este filme da tendência atual, e também recorrente à época em que foi lançado, na construção pouco elaborada de roteiros de comédia. É com o surgimento de uma personagem secundária, com a qual o protagonista passa a dialogar, que a narrativa ganha mais consistência. São nesses diálogos que o lado mais “comum” do personagem passa a aparecer, como forma de justificar os seus atos. O mais interessante é perceber que não há pudor entre os dois. A moça escuta e até se mostra interessada nas experiências sexuais de seu amigo. O diálogo é cortado por cenas em que o protagonista pratica suas fantasias eróticas, como ele mesmo confessa à outra personagem, criando situações, vozes e dando vida a suas “parceiras sexuais”. A experiência ao ver o filme é de certa forma, libertária. Por girar em torno de um personagem e de suas taras, seria extremamente natural que a estranheza fosse a única coisa a se sentir. Entretanto, quando o vemos como um alguém comum, porém com gostos peculiares, nos vemos ali. Somos todos como ele, comuns ao nosso jeito, estranhos em meio à mesmice, buscando uma forma de fugir das concepções um tanto quanto sufocantes impostas pela sociedade. Em “Vereda Tropical”, a comédia é sutil e a experiência fílmica é orgástica assim como a do personagem e suas melancias. Não há nudez ou palavrões, como fala o próprio Joaquim Pedro de Andrade, porém a estranheza ainda está presente. É na mistura entre o cômico e o estranho que o filme melhor se sustenta. O motivo de riso é novo. Debocha-se, porém se respeita, pois o personagem é ingênuo e livre para agir como quiser, para escolher o que o atrai e para dividir suas experiências com quem desejar. Nós, espectadores, nos sentimos confidentes dele, e mesmo que distantes de agir da mesma forma, nos identificamos e desejamos ser livres e donos de si como o personagem o é.