15 de setembro de 2015

CRÍTICA: PACIFIC

Pacific, 2009, de Marcelo Pedroso

por Victor Leite



Espelho de três lados


Existe a teoria que cada pessoa desempenha um papel. Ninguém é quem diz ser, somos todos personagens, construídos no dia a dia, a cada nova experiência, a cada novo acontecimento. Mas o que acontece quando se adiciona uma câmera a isso? Uma metalinguagem interessante, onde o personagem interpreta, durante sua exposição àquele aparelho tecnológico, outra pessoa.

Em Pacific, de Marcelo Pedroso, somos apresentados aos passageiros do cruzeiro que dá nome ao filme, sendo esse um cruzeiro com programação de ano novo e destino a Fernando de Noronha. Durante esse trajeto, alguns dos passageiros filmaram toda a sua experiência de 7 dias e 6 noites. Através dos produtores, Pedroso conseguiu as filmagens de algumas dessas pessoas, mas sem avisá-las de antemão que as filmagens seriam utilizadas em um documentário.

As imagens que se vê durante o filme podem ser consideradas uma espécie de interpretação da classe média pela própria classe média. Hoje em dia, para muitas pessoas, o ato de viajar em um cruzeiro é uma meta a ser alcançada. Através da montagem do filme, podemos perceber que os alvos da câmera (e também as pessoas que a operam) alcançaram essa meta e parecem felizes com isso. Mas essa felicidade é dúbia. Através da lente da câmera, cada pessoa filmada desempenha certo papel. Livres de qualquer modéstia ou pudor demasiado, eles tentam passar nas imagens, que provavelmente iriam virar lembranças salvas nos computadores, um senso de realização para que, quando vissem esses vídeos no futuro, pudessem sorrir e se lembrar com nostalgia da tal viagem a bordo do Pacific. Afinal, por que pudor quando se está fazendo um vídeo apenas para os olhos da família?

A única performance realista durante o filme é de uma senhora, que inadvertidamente é filmada em seu sono. Não há nada no filme mais autêntico. Os personagens se desenrolam entre o homem piadista, os pais enjoados, o casal romântico (que fazem questão de retratar seu romance na câmera, como em um momento em que eles se filmam de mãos dadas olhando para o horizonte), entre diversos outros. Nem mesmo as crianças fogem de interpretar outros durante o tempo em que a câmera os captura. Há certo fascínio e certo receio com a imagem que se deve e a imagem que se quer passar para quem se assiste. As crianças querem chamar a atenção da câmera. O piadista quer fazer o espectador rir. O casal quer tomar um vinho enquanto assiste a seu registro da viagem. E assim cada pessoa desenvolve sua própria narrativa dentro daquela peça visual.

Outro ponto a se considerar é o fato do compartilhamento dessas imagens com o diretor do filme. Segundo relatos, os participantes pareciam bastante entusiasmados para participar do projeto quando ficaram sabendo do que se tratava. Mas qual seria o limite de exposição? Estariam todos eles dispostos a abrir sua intimidade e mostrar seu cotidiano (ainda que levemente alterado, pelo local, pelas pessoas ou outros fatores) para uma experiência do diretor ou para divertimento (ou diferentes reações possíveis) da plateia? Qual o limite da privacidade?

O filme é válido como uma experiência visual, que nos mostra como nos comportamos quando achamos que ninguém mais está olhando. Mas a partir do momento em que esse alguém olha, a imagem toma um significado diferente. Ela vira um relato privado em que se está xeretando, mesmo que com consentimento, e que pode refletir uma imagem da sociedade que muitos preferem não querer ver.

14 de setembro de 2015

CRÍTICA: Morte em Veneza

Morte a Venezia, 1971, de Luchino Visconti

Por Evandro Lira


Poucas coisas são mais almejadas pelos artistas que a beleza. Seja qual for a maneira como ele faz a sua arte, a beleza é o ideal a ser alcançado. Ele acredita que o que produz é belo, acredita que o belo pode estar no feio, que o belo pode estar no nada. Ele aprecia e valoriza o que é lindo e, enquanto arte, é o que deseja doar para o mundo.

O protagonista de Morte em Veneza é um artista, e como tal não poderia querer diferente. Gustav von Aschenbach encontra-se num dilema pessoal, confrontando sua arte e seus desejos mais profundos, à medida que tenta preservar sua integridade física e moral. Músico de sucesso, respeitado aonde quer que fosse, Aschenbach toma um tempo de descanso e decide se instalar em Veneza.

A ideia de revigorar-se vai por água abaixo quando no hotel que está hospedado, se depara com a forma viva mais bela em sua plenitude, um jovem polaco que está de férias com a família. A partir daí ele encarcera dentro de si um sentimento que antes só experimentara em seu ofício, o desejo pela perfeição. 

Transposição da obra célebre de Thomas Mann para o cinema, Morte em Veneza teve muito a ganhar com a abordagem narrativa e estética de Luchino Visconti. De um texto complexo e cheio de nuances, o cineasta entrega um filme cujo enredo é simples, mas que é forte o suficiente para segurar o espectador e satisfazê-lo.

A Veneza de Visconti não é romantizada, como se esperaria. Ele não opta por mostrar tomadas de coberturas com belos planos gerais dos canais e lagoas da cidade, que todos os anos atraem milhares de turistas apaixonados. Ainda que tenha oportunidade como, por exemplo, quando Aschenbach resolve partir da cidade e passa pelos canais, nós assistimos um longo plano fechado no rosto martirizado do personagem enquanto sentimos o balanço da balsa pelas águas.

Ao longo de todo o filme, a câmera de Visconti passeia pelos grandes cenários da produção, seja pelos espaços suntuosos do hotel, onde o protagonista vê pela primeira vez o jovem, ou pelas areias da praia onde ele passa boa parte do tempo. A câmera observadora para em cada grupo de “figurantes” dispostos pelo espaço, sendo até possível compreender o que eles estão falando, fortificando a ideia de que o personagem é um tanto observador.

É numa dessas passeadas que Aschenbach se depara com o garoto Tadzio e desde então não desgruda mais os olhos dele. Durante toda a projeção seu olhar está sempre voltado para aquele objeto de amor platônico e para tudo que está ao redor dele. É interessante notar aqui como a ideia da homossexualidade permeia todo o filme, mas nunca se faz importante. A aparência andrógina do ator Björn Andrésen torna isso mais evidente. A atração de Aschenbach pelo jovem fica no campo da idealização, da perfeição, quase como um endeusamento de uma escultura de Michelangelo.

A busca pela perfeição não é só uma alcunha para a beleza do garoto, está relacionada também a perfeição ideológica que Aschenbach aspira para si mesmo, que ele sempre aspirou e colocou como base em sua vida. Sua rigidez moral sempre caminhara lado a lado com seu comportamento, e ali não seria diferente. Num dos flashbacks em que o vemos discutindo arduamente com um amigo questões ligadas à filosofia e a arte, Aschenbach escuta algo que não pode negar: “Quer que seu comportamento seja tão perfeito quanto sua música”.

Esses flashbacks, aliás, fazem um válido panorama do que levou o protagonista até aquele hotel praieiro em Veneza. Eles nos aproximam do personagem – funcionando mais que os excessos de zoom – nos fazendo entender os porquês do comportamento daquele homem de meia-idade. 

A atuação segura e intensa de Dirk Bogarde é fundamental para compor o complexo personagem e seus conflitos internos, e juntamente com a trilha sonora de Gustav Mahler, repleta de virtuosismo, somos transportados para todo esse momento angustiante da vida de um homem.

Ao passo que o filme vai chegando ao fim, encaramos um Aschenbach cada vez mais decadente em si mesmo. Nada evoluiu na não-relação entre ele e Tadzio, eles sequer trocam uma palavra. Aschenbach tem ataques de fúria, corre atrás de cuidar da aparência, se preocupa com o bem-estar do garoto num rompante de alucinação, definha completamente sobre as águas venezianas.

Morte em Veneza acaba por levar a refletir sobre o artista como pessoa. Aqui a busca pela perfeição parece nunca findar, mesmo quando ele desiste da procura, o poder é imponderável demais para ceder.

30 de julho de 2015

CRÍTICA: Minions

Minions, 2015, Pierre Coffin e Kyle Balda

por Victor Leite


Pequeno, amarelo e cansativo 

No não tão longínquo ano de 2010, estreava nos cinemas Meu Malvado Favorito. Um filme não particularmente memorável, nem particulamente engraçado. Era a sessão família-B. Sendo o primeiro filme da Illumination Entertainment, divisão da Universal, o filme foi um sucesso de público absoluto, arrecadando mais de 500 milhões de dólares. Obviamente, veio a sequência. Com um orçamento de apenas 7 milhões a mais que seu antecessor, o filme conseguiu o feito de arrecadar quase 1 bilhão de dólares. Uma mina de ouro. Mas qual é a explicação do sucesso dessa franquia? O visual engraçadinho? O humor baseado em gags visuais? Podemos encontrar isso nos Minions, os pequenos ajudantes do protagonista desses dois filmes. E como já aprendemos em Hollywood, o que fazemos quando se acha uma mina de ouro? Você cava.

Programado inicialmente para dezembro de 2014, o filme foi adiado para Julho de 2015, já que Meu Malvado favorito 2 havia sido lançado em uma época semelhante e seu sucesso como blockbuster de verão foi estrondoso. O marketing para Minions, inclusive, começou cedo. Desde 2014, teasers dos simpáticos seres amarelos fazendo engraçadisses antes dos filmes já eram mostrados. E mostrados. E mostrados. Uma hora cansa.

Servindo como um spin-off para a série principal, Minions pretende contar a história dos amarelinhos antes de conhecerem Gru: Desde a sopa primordial, os pequenos seres procuram vilões para servir, e cada vez que acham uma ameaça maior, vão atrás até inevitavelmente causar a morte de seus mestres. Nos anos 60, depois de muito tempo isolados e sem um propósito para viver, três corajosos membros daquela sociedade amarela decidem se aventurar pelo mundo e achar o próximo grande vilão ou vilã que fará jus ao nome de mestre.

Com uma infinidade de piadinhas sem graça e referências a cultura britânica (a maioria do filme se passa em Londres), o filme parece tentar ser bom e você pode até ficar triste por ele não conseguir. Eles parecem tentar emular aquele humor inteligente de algumas animações, com piadas de duplo sentido (que garantem que as pessoas que levam as crianças vão se divertir tanto quanto elas) e temas que procuram falar com toda a família. Bem, esse não foi o caso. Com 92 minutos, o filme poderia perder pelo menos metade da duração.  

A dublagem é outro ponto negativo. Recentemente, nem mesmo as dublagens estão recebendo a qualidade de outrora. Se em Detona Ralph, pouquíssimas escolhas da versão nacional foram acertadas, podemos contar nos dedos as vozes brasileiras que funcionaram nesse. Eu, pessoalmente, conto em um: os minions. E eu realmente não sei se eles foram dublados.

Se você realmente não tem nada pra fazer e quer fazer um agrado e levar seu parente menor pra passear, sugiro passar longe. Um passeio de bicicleta no parque, um sorvete de chocolate ou até uma sessão de Shrek ou Procurando Nemo no notebook vão ser bem melhor. No final das contas, se você quiser realmente ver, não espere rir até cair no chão. Só tenha em mente que ano que vem provavelmente vai ter outro filme com esses simpáticos baixinhos, que sim, tem sua graça, mas 90 minutos deles podem ser incrivelmente cansativos.

Cave. Cave. Cave. E convenhamos, o ouro nunca vai acabar, por que somos nós que alimentamos a mina.

13 de julho de 2015

CRÍTICA: Uma mulher sob influência

A Woman Under Influence, 1974, John Cassavetes

por Victor Leite



A loucura é relativa, contagiosa e será cinematizada
       
        Há certo horror voyeurístico em Uma Mulher Sob Influência. Em uma casa normal, uma família normal, vivendo rotinas normais. Pode ser um menino crescendo em Boyhood (Richard Linklater). Uma atriz de TV tentando alcançar o estrelato em The Comeback (HBO).  Nós assistimos a tudo isso. Compassivos, comendo pipoca ou rindo. No final somos espectadores da história e o que captamos diante dela são sentimentos.

        Quando conhecemos Mabel, vemos nela alguém diferente do seu redor. Seja através de suas roupas (cuja cor costuma destoar dos outros elementos em cenas, em que geralmente seu figurino é o mais vivo), através de gestos ou até mesmo da forma como é mostrada (em planos fechados, remetendo a uma sensação de prisão).  Interpretada por Gena Rowlands, indicada ao Oscar e vencedora do Globo de Ouro pelo desempenho, é improvável que o espectador não nutra certo sentimento pela protagonista. Não só por ela remeter a diversas mães, mas também por ela refletir certos aspectos da personalidade que podem ser comuns a várias pessoas. Com seus tiques e manias, Mabel consegue ser otimista e até um pouco aérea, tentando viver em um mundo só seu.

        Ao conhecermos Nick, percebemos nele um homem frustrado. Sendo um capacho no trabalho, tendo que trabalhar além do esperado e em horas inconvenientes, é em seu lar que ele tenta tomar controle de sua vida, para o desespero de sua esposa. O embate entre as personalidades de Nick e Mabel constroem o filme. Esse duelo exala grandes momentos, porém o maior deles é em um jantar, depois que Mabel volta da temporada de reabilitação. Inicialmente, Mabel hesita em interagir, reprimindo sua personalidade para tentar se adequar e agradar a todos os presentes. O marido, então, implora-lhe que volte a ser como era. Feito isso, a repressão dele volta com força total. Essa ambiguidade, em que ele não decide se quer a Mabel integral ou uma esposa modelo que ele tenta controlar tornam Nick um personagem tão interessante quanto sua mulher.

        Outros personagens, como o pai dos amigos dos filhos de Mabel e Nick, ou a mãe de Nick, também tem seus momentos de surto, o que vem para reforçar a sensação de horror e aversão: As pessoas, em sua eterna arrogância e presunção, cometem erros esdrúxulos achando que fazem o melhor, quando na verdade, são tão desequilibradas quanto às pessoas que tentam “ajudar”. Afinal, o que é desequilíbrio? O que é sanidade? O que é loucura?

        Indicado à Melhor Diretor no Oscar e no Globo de Ouro, John Cassavetes cria aqui o que é considerada sua obra prima. Tido como o percursor do cinema independente americano, aqui ele comprova que não se precisa de grandes orçamentos para realizar grandes filmes. Com apenas uma locação, que ajuda a transmitir a sensação de claustrofobia e prisão através de suas diversas portas, corredores e janelas, o filme tem um tom único que deixa o espectador apreensivo pelo próximo diálogo, onde cada vez mais a instabilidade se instaura e atinge a maioria dos personagens. A atuação é soberba, sobretudo a de Gena, que já foi considerada uma das melhores atuações do cinema. A cena da súplica dela ao pai, durante o jantar, é singular.

        Cassavetes, inclusive, é por vezes chamado de autor do improviso. Conhecido por ter um processo mais livre de direção, mais interessado na performance dos atores do que em convenções e restrições, o que realmente importa (como está claro neste filme) pode ser resumido na conclusão de Thierre Jousse, que analisou os procedimentos do cineasta: “Não importa se os atores improvisaram, ou se ensaiaram muito esse improviso, e sim a consequência na tela”. (Revista Cinética)

        Se você vai gritar para a tela e tentar convencer Mabel a tomar as rédeas e deixar o marido abusivo (como eu fiz) ou apenas querer desligar a tela para a família fechar as porta e resolverem seus problemas sozinhos, o filme é uma obra única, que sobreviveu ao teste do tempo e ainda hoje mostra que tem força e consegue impactar. Soberbo.

2 de julho de 2015

CRÍTICA: Nenette e Boni

Nenétte et Boni, 1996, Claire Denis

Por Isabelle Ramos


As sequências iniciais de Nenétte et Boni (Claire Denis, 1996) são preenchidas de cortes repentinos que parecem não conectar as cenas. O sentido da trama parece distante e, de fato, nos primeiros quarenta minutos nada acontece de muita relevância, além da apresentação de alguns personagens que também não representam tanto significado ao enredo e a passagem pela vida de Boniface.

O longa inicialmente se apresenta nas fantasias que Boni traça para o seu perfil em meio aos devaneios sexuais que acabam pairando sobre o filme, quando é apresentado ao espectador através da atração que sente pela padeira. Os sons, a corporeidade impregnada nas sequências ricas em planos detalhe, valorizam os movimentos e gestos realizados de maneira a representar essa tensão sexual, conduzindo o olhar do espectador, mas permitindo suscitar desfechos.

A narrativa se desenvolve com a chegada de sua irmã Nenétte que representa o lado realista na vida de Boni. A rejeição inicial revela a problemática de uma família que foi desestruturada. A morte da mãe e a distância do pai na vida dos filhos, principalmente na de Boni, traça a necessidade que os irmãos têm em criar um vínculo para amadurecer. Claire Denis representa esse aspecto na gravidez de Antonette, agora os personagens têm de decidir essa passagem para a vida adulta.

Esse processo de construção, desconstrução e troca se dá até as sequências finais, Nenétte ainda resistindo em sua insegurança e no rompimento da relutância de Boni com a presença da irmã e sua gravidez. Durante a aproximação dos irmãos, os corpos ainda tem destaque na construção fílmica. Ainda tensionando Boniface de maneira mais sexual, e suavizando as formas de Nenétte em sua gravidez.

Enquanto o longa caminha através das fantasias e as realidades de Boni e o drama de sua irmã, o espectador pode observar que a sua filmagem é explorada mais internamente do que externamente, além de ser permeado de tons frios e ser predominante o uso do vermelho e do azul no cenário, nas roupas e nos acessórios, na intenção de representar a França juntamente com as cenas externas, a Marseille em que o filme está instalado.

Com suas sequências enfadonhas, Nenétte et Boni não é uma experiência fácil. Se apegando a um aspecto narrativo, o desenvolvimento monótono da trama e a longa espera por algum acontecimento faz com que ele seja um filme que dá chance ao espectador de se perder diante do seu seguimento e se cansar facilmente.

30 de junho de 2015

CRÍTICA: A rotina tem seu encanto

秋刀魚の味, 1962, Yasujirō Ozu

por Victor Leite


Mergulhando na sutileza, em 2.5D

Comecei o filme com sono. Não que o filme tenha me dado essa sensação, mas já estava com sono antes de começa-lo. É um erro, eu sei. Mas em seu início, A Rotina Tem Seu Encanto já encanta (sacou?). Cartelas com ilustrações e uma trilha sonora amena ditam o tom dos próximos quase 120 minutos de filme. Shūhei, um viúvo que lutou na Segunda Guerra Mundial, encontra com um velho professor e a partir do conhecimento que a filha desse professor nunca se casou, começa a refletir sobre seu futuro e de sua família, especialmente da filha, Michiko.

Na crítica do site contracorrente, há a seguinte frase: “Ao deslizar sobre esta superfície, os personagens revelam um mundo bidimensional, que se desdobra em labirintos espaciais sem relevo.” Eu discordo. A escolha do diretor em câmeras estáticas criam um cenário talvez até mais tridimensional do que as câmeras rodopiantes de hoje em dia. Cada plano parece uma pintura, um registro dessa família japonesa, que nos convida a entrar em sua casa e conhecer sua encantadora (sacou?) rotina.

Os cortes entre uma cena e outra, também marca registrada do diretor, nunca utilizam o fade out ou outros meios típicos. Ozu se utiliza de planos com determinados objetos ou edifícios, geralmente onde a próxima cena irá acontecer ou a última cena aconteceu. Confesso que na primeira vez, isso causa certo estranhamento. Mas a medida que o filme progride, essas transições entre as cenas se tornam uma coisa orgânica dentro do filme, totalmente compreensível e agradável com o ritmo.

Mas eu encontrei na narrativa um dos pontos mais fortes do filme (como sempre acontece comigo). Não que o filme não seja impecável em sua fotografia, áudio, direção ou outros aspectos técnicos. Kōgo Noda, roteirista que colaborava frequentemente com Ozu (e, curiosamente, esse foi o último filme dos dois) consegue junto com o diretor (que co-escreveu o roteiro) criar uma história singela e sutil, contudo não menos poderosa. A história desse pai e sua família consegue abordar temas pesados como velhice, machismo, guerra, amizade e a própria vida com uma leveza improvável a principio, mas alcançada com louvor. Penso nesse filme como uma reflexão de seu protagonista: quando percebe que os rumos da vida (através de seu antigo professor, seus amigos, filhos, etc) nem sempre acontecem como planejado, ele questiona se suas decisões foram as melhores para aqueles a que suas decisões influenciariam. Em quase todas as cenas, existe alguém bebendo, ele ou seus amigos na maioria. É a forma de descanso e lazer daqueles que já viveram tanto, já sofreram tanto e agora apenas querem viver uma vida sossegada e em seus limites, feliz. A ausência de qualquer tipo de vilania, maquinação ou maldade em si também é um dos pontos positivos da narrativa. É lindo apenas ver seres humanos, com suas fraquezas, alegrias e tristezas, apenas lá, vivendo suas rotinas. Existe uma cena particular (a cena que realmente me acordou do sono) que me fez ficar grudado na tela: a filha do professor de Shūhei senta-se em um banco e chora, vendo seu pai bêbado e claramente infeliz com seu destino. Posteriormente, após outra visita do ex-aluno, o próprio professor senta nesse mesmo banco e repete a expressão da filha. Palavras não existem para descrever o que essa cena causou e significou para mim. Única e poderosa, capaz de dizer muito apenas com duas imagens: filha e pai, iguais.

Claramente, Ozu era um mestre do cinema. Com duas horas de conversas, descobertas, risos e romance, esse filme consegue entreter e maravilhar, com sua onipresente sutileza. Um achado da sétima arte que deve ser visto por todos, principalmente para recalibrar aqueles mais acostumados com tiros, explosões e movimentação acelerada. Seus planos fixos vão lhe encantar (prometo que parei).

28 de junho de 2015

CRÍTICA: Fahrenheit 11 de Setembro

Fahrenheit 9/11, 2004, Michael Moore

Por Evandro Lira


Michael Moore e seu cinema dividem opiniões desde o início da sua carreira, lá em 1989 com o documentário Roger e Eu. Conhecido e mitificado pela sua postura crítica em relação à figura política e econômica dos Estados Unidos, que transcende as fronteiras de todo o mundo, Moore escancara em suas obras tudo que há de mais sórdido nos bastidores dessa grande potência.

E não é mesmo tão difícil arranjar admiradores e inimigos quando se vai por esse viés. Como ensina uma famosa sabedoria popular: política, tal qual gosto, futebol e religião, não se discute. Gostar ou não dos filmes de Michael Moore é basicamente separar esquerda de direita, democrata de republicano, comunistas de capitalistas... e nós não podemos cair nesse erro, afinal se as coisas fossem tão simples assim tudo isso não seria discutível.

Tocando na ferida do povo americano a cada novo filme ou livro (Moore também é escritor), ele usa fatos trágicos que ocorreram, seja na sua pequena cidade do interior ou no grande centro financeiro do país, como ponta pé para questionar o que precisa ser questionado.

É obvio que não seria diferente no seu Fahrenheit 11 de Setembro, 2004. Com um Oscar na prateleira (por Tiros em Columbine, 2002), um público formado, e as atenções voltadas para seus novos trabalhos, Michael Moore destrincha os acontecimentos que levaram ao “maior atentado terrorista da história” e principalmente as consequências que dele se fizeram. Está lá o seu habitual sarcasmo afiado, seu total senso de parcialidade, sua narração maliciosa e sua estética requintada.

O filme abre contextualizando o espectador nas eleições presidenciais americanas de 2000, na qual o vice-presidente Al Gore disputava com o governador do Texas, George W. Bush. No primeiro minuto, Moore já sugere que a vitória de Bush foi resultado de fraude eleitoral, polêmica de caráter amplamente discutida pelo povo americano.

O então Presidente Bush é quase que o pro-antagonista de Fahrenheit, sem dúvidas. Mostrando gravações de arquivo de um Bush confiante, debochado e infantil, diferente do que se costuma ver nos discursos políticos, Moore nos mostra que os primeiros oito meses de mandato do presidente não foram muito bem sucedidos. Crises na economia, no congresso e nas ruas, resumem o 2001 dos EUA. E dando início ao seu humor elaborado, Moore nos mostra que a solução encontrada por W. Bush foi tirar umas férias. Tem-se então uma sequência divertida, com trilha sonora animada, montagem rápida, um Bush sorridente e animado, mas... não por muito tempo.

Os créditos do filme se dão paralelamente com cenas de jornalistas e políticos – incluindo o próprio Bush – se maquiando antes de alguma aparição pública na tv. Percebe-se uma sutil investida do cineasta para dizer o quão bons atores são esses personagens reais. Após isso, uma tela preta toma o filme por uns minutos, e só conseguimos ouvir gritos de horror, ambiente, barulhos de sirenes e é impossível não remetermos imediatamente ao 11 de setembro. Moore não mostra em nenhum momento das duas horas de duração aquelas cenas que chocaram o mundo das torres em chamas ou dos aviões se chocando, afinal nós estamos cansados de vê-las. O que importa aqui é o que causou nas pessoas, é o sentimento, Moore vai fundo nas emoções do povo, de forma objetiva, mas não simples. Como prova, o que se segue à esse momento são closes das pessoas nas ruas e suas reações naquela manhã do atentado.

Por incrível que pareça, o filme não é sobre a tragédia do 11 de setembro, e sim sobre todo o contexto dessa e à partir dessa. Fahrenheit é sobre a política do medo que se estabeleceu não só nos Estados Unidos, mas em todo o planeta. É sobre como o ocidente passou a olhar pra si mesmo no início desse século que começava, e sobre como desde então encaramos de forma tão pré-julgadora os motivos dos outros, só pensando no nosso bem-estar e segurança.

O documentário aborda as verdadeiras razões do Governo Bush invadir o Afeganistão em 2001 e o Iraque em 2003, que segundo o filme, se deram mais pelos interesses particulares da indústria de petróleo dos EUA que do interesse em proteger os americanos do “inimigo”. Moore ainda especula uma possível relação de negócios entre a família de George W. Bush com diversas famílias árabes, incluindo a família Bin Laden, causa essa que levou o governo a liberar parentes de Osama logo após os atentados sem qualquer tipo de interrogatório.

Focando na “guerra ao terror”, podemos ver retratos impiedosos causados pela invasão no Iraque, com milhares de civis mortos, incluindo crianças – Moore não nos poupa de cenas como essas. Ele nos mostra também um lado pouco explorado desse contexto, o dos soldados e suas famílias. Sim, Moore não é anti-americano, pelo contrário, os americanos são vítimas de todo um sistema nos seus filmes.

Conhecemos o Patriot Act num dos momentos do longa, um plano do governo que se livrou de algumas amarras da Constituição para se tornar um ato legal. Ele promove a espionagem, fere gravemente os direitos civis e humanos, se dando o direito de obter qualquer informação de interesse do governo. Moore repudia o ato claramente, e mostra que isso foi uma escolha imposta ao povo americano pelo governo com base em toda a sua política do medo.

Michael Moore realmente explora as emoções do espectador com todos os artifícios possíveis, como o uso da trilha sonora melancólica nos momentos certos, os closes nos rostos das pessoas entrevistadas, nas perguntas extremamente persuasivas que faz a elas e etc.

Seu senso de montagem é brilhante, toda a estética do seu filme é precisa e eficiente. O documentarista sabe, melhor do que ninguém, como fazer perguntas constrangedoras sem a menor vergonha na cara, como fica claro no momento em que ele está em frente ao congresso nacional, abordando os congressistas e pedindo os nomes de seus filhos para alistá-los na guerra. É cruel, mas revigorante ao mesmo tempo.

Moore é facilmente acusado de manipulador, oportunista, anti-ético, e é difícil não concordar com isso, pois me parece óbvio. No entanto, acho fácil assumir que Moore não é hipócrita, ele faz tudo isso sem maquiagem. Usa a ferramenta que melhor domina, o cinema, para dizer o que pensa, e ora, não é isso a arte?

O filme acaba por levantar uma discussão interessante sobre o próprio cinema, no caso sobre o gênero documentário: a necessidade de documentar sem intervir, sendo imparcial. Fica muito claro assistindo Fahrenheit, e todos os outros do cineasta, que isso não se prova correto. Se Moore não faz documentário, o que ele faz? A neutralidade pode sim estar presente num filme documentário, se assim for a sua proposta, mas eu particularmente acho essa uma tarefa difícil. Nem a própria imprensa, que tem o discurso de mostrar o fato pelo fato cumpre esse papel, e aí está um dos maiores perigos dos meios de comunicação de massa e também um dos maiores méritos de Michael Moore. Ele mostra o que quer, deixando extremamente claro que é nisso que ele quer que você acredite.

Não é na parte jornalística que Michael Moore tem os seus melhores momentos, e sim nos aspectos narrativos dos seus filmes. O mais interessante de Fahrenheit não é quando os fatos são mostrados, e sim quando casos são expostos, desabafos são vistos, ouvidos e sentidos. Michael Moore não é só um cidadão com uma causa, ele é um artista, um homem do entretenimento, um contador de crônicas sociais.

CRÍTICA: NOW!

Now, Santiago Alvarez, 1965

por Victor Leite



O videoclipe da revolução

Censurada nos E.U.A por ser “subversiva demais”, a música Now, de Lena Horne, declara em sua letra: “a mensagem dessa música não é sútil...”. Como poderia então o curta cubano que tem essa música como trilha sonora seguir esse caminho? A mensagem é direta, incisiva e inquietante. Usando diversas imagens dos anos 60 dos E.U.A, quando a luta pelos direitos civis dos negros atingiu seu pico, o curta usa de imagens chocantes para passar sua mensagem. Repressão policial, uma analogia ao nazismo e KKK, podemos perceber que nesse vídeo o governo dos E.U.A é o grande vilão. Com pouco mais de cinco minutos de duração, o curta pode ser visto como um videoclipe para canção, inclusive sendo considerado como o primeiro videoclipe da história. Os significados dos dois sem complementam e juntos, formam um curta metragem poderoso e com um significado explícito. Dialoga com a revolução cubana, com os embargos comerciais contra Cuba e explora essa veia vilanesca dos Estados Unidos, tentando pintar essa imagem enquanto usa a história do próprio país. Há também um paralelo com os tempos atuais, em que protestos ao redor do mundo encontram violenta repressão policial. Mas como Lena Horne avisa na canção: O momento é agora!

CRÍTICA: Jurassic World - O mundo dos dinossauros

Jurassic World, Colin Trevorrow, 2015

por Victor Leite


Sobre uma sucessão de erros

O que um filme de ação deve ter para chamar a atenção do público? Cenas que te deixam na ponta da cadeira e que te fazem prender a respiração? Vilões fortes que oferecem perigo aos protagonistas? Personagens que você se importa? Bem, não perguntem a Jurassic World, por que ele está cheio das respostas erradas.

Estrelando Bryce Dallas Howard como Claire, a gerente de operações do novo parque dos dinossauros, localizado numa paradisíaca ilha da Costa Rica, e Chris Pratt como... o mocinho bonito e aventureiro (ele já fez esse papel em Guardiões da Galáxia), o filme realmente não se preocupa (ou não consegue) desenvolvê-los ao ponto de você se preocupar com eles. A figura do vilão, ou a tentativa de se criar uma, é pifía. Todos os personagens se tornam caricaturas, reduzidos às suas funções básicas do enredo e impossibilitados de transcedê-las.

De fato, um dos maiores problema desse filme parece ser o roteiro. Com um enredo que toma emprestado várias sacadas do primeiro filme da série, de 1993, podemos pensar nele como uma tentativa de atualizar a franquia para um público mais jovem. Se percebemos ao longo do filme uma dúzia de saídas fáceis e soluções que não fazem sentido para os conflitos apresentados, o entretenimento que o filme deveria proporcionar acaba não se concretizando. Algumas situações que deveriam servir como escape humorístico chegam a beirar o ridículo. A preferência dos meninos a ficar com o mocinho, mesmo depois de Claire se mostrar tão capaz quanto (e ser a TIA deles!), ou até mesmo o salto inquebrável da heroína, que o usa até o final do filme, seja pra andar na floresta, dirigir um furgão ou correr de dinossauros. Talvez o Universo Marvel tenha tido um crossover com Jurassic World: provavelmente o salto era de adamantium.

Sendo o filme que faturou um bilhão de dólares mais rápido na história do cinema, é pertinente se perguntar que tipo de blockbusters o público está mais interessado em assistir. Mad Max: Fury Road, um filme de George Miller bastante elogiado pela crítica e público no ano de 2015, conseguiu pouco mais de 350 milhões de dólares mundialmente, enquanto os números de Jurassic World só aumentam a cada dia. Embora os efeitos especiais e a trilha sonora ainda consigam empolgar, existe muito pouco conteúdo pra uma técnica eficiente.


PS.: Segue um texto muito interessante sobre o filme e sua abordagem sobre as personagens femininas do longa, outro aspecto bastante problemático: Why Jurassic World doesn't deserve Claire Dearing (or her high heels)

CRÍTICA: Fuga de Nova York

Escape from New York, John Carpenter, 1981

Por Tiago Lima


Um aspecto interessante presente em filmes futuristas produzidos no século passado reside no fato de que os idealizadores imprimem uma visão particular a respeito de como seria a configuração social dos tempos ainda por vir. John Carpenter, em seu "Fuga de Nova York", se baseia em um aspecto mais catastrófico - até mesmo pós apocalíptico - na sua visão futura da cidade de Nova York. No filme, que se passa no ano de 1997, a cidade norte-americana seria transformada em uma prisão de segurança máxima, onde vivem exclusivamente grupos marginalizados que convivem com uma imagem totalmente diferente da realidade da metrópole, agora suja, em ruínas e sem qualquer tipo de higienização.

A representação da cidade composta pela direção de arte cria a atmosfera perfeita para que seja desenvolvida a trama principal do filme, a operação de resgate do presidente do Estados Unidos, cujo avião foi sabotado e derrubado na parte da cidade onde fica localizada a prisão. Para pôr em prática o plano elaborado pelos responsáveis pela administração da prisão, um dos presos, Snake Plissken é recrutado, com a promessa de receber sua liberdade caso tenha sucesso em sua missão.

A partir desse acontecimento, abre-se espaço para uma série de cenas repletas de ação e suspense que conseguem prender o espectador, como num bom filme blockbuster hollywoodiano. Entretanto, no que pode passar despercebido pelo "grande público" reside o que há de mais grandioso na produção de John Carpenter.

Ao abordar o espaço urbano da cidade de Nova York de uma forma completamente diferente do que se concebe na realidade, o filme adentra em uma discussão acerca da composição social, das relações entre o espaço urbano e as pessoas, entre outros.

O roteiro se constrói de forma inteligente, conseguindo se posicionar em sua crítica através de recursos básicos do cinema, o que é de extrema importância para o espectador, que busca diversão e entretenimento e o consegue plenamente. Porém, enquanto Snake se aventura por uma cidade marginalizada e sem as mínimas condições de se viver, tanto para a sociedade contemporânea ao lançamento do filme, quanto para a atual e, sem dúvidas, para a de qualquer época posterior, há um crescente crítica a essa mesma sociedade que analisa a Nova York do filme como uma impossibilidade.

Sentir-se seguro em qualquer parte do mundo requer certos pré-requisitos. No filme de John Carpenter, não há nenhum. A cidade de Nova York encontra-se habitada pelo que pode ser considerado como o escárnio social, que caminha pelas ruas, agora todas com características de gueto.

Intrigante imaginar os motivos pelos quais o território completo de uma cidade passou a ser utilizado como uma prisão. Mais intrigante ainda é perceber que a concepção arquitetônica de cidades difundida nas últimas décadas, na qual a visão de progresso está diretamente atrelada à verticalização e isolamento de espaços entre os outros como forma de segurança, é a principal motivação para a crítica que Carpenter faz em seu filme.

Mesmo que muitas vezes nos passe despercebido, estamos presos em meio à loucura das cidades, seja ela de cunho social ou da própria arquitetura das cidades. Carpenter percebe isso muito bem, criando o contexto de seu filme baseado em uma possibilidade distante, mas ao mesmo tempo possível, justamente pelo fato de já vivermos em uma espécie de prisão.

Ao hiperbolizar o cenário que observa cotidianamente, o diretor se aprofunda numa crítica à arquitetura das cidades e ao que se relaciona a ela: a sociedade.

Habitada por grupos marginalizados, a prisão de Nova York, apesar de se constituir numa clara desordem social, apresenta características atreladas a qualquer sociedade. Existem relações de hierarquia entre os personagens, mesmo todos estando enquadrados na mesma situação de prisioneiros. Nesse aspecto, percebe-se que não há pré-requisitos para que uma sociedade estabeleça, espontaneamente, as relações que haverão entre si. Assim como a sociedade da vida real, a do filme possui suas próprias particularidades.

O aprisionamento do presidente dos EUA, além de ser o principal fio narrativo, constitue-se em uma das metáforas mais importantes de todo o filme. Por ser a figura de maior poder e, de certa forma, o responsável pelas medidas que tornaram a cidade em uma prisão, aprisioná-lo seria a forma mais eficaz de demonstrar que o poder social não está apenas concentrado além dos muros da prisão.

A figura de Snake também representa a fragilidade do governo, já que ele é, também, um prisioneiro e, ainda assim, a única forma para que o resgate do presidente fosse realizado com sucesso. É dessa maneira que se critica a forma como os líderes se impõem sobre a sociedade que teoricamente lidera, mas que nem sempre se deixa ser liderada, e que conquista poder de voz quando decide unir forças em prol de seus objetivos.

John Carpenter, mesmo construindo a narrativa de seu filme baseada em críticas já citadas anteriormente, consegue, com maestria, se distanciar de um aspecto documental e/ou explicitamente filosófico, já que os temas favorecem, em tese, uma aproximação com esses aspectos.

O desenvolvimento narrativo sendo marcado por cenas de adrenalina, com muitos combates físicos entre os personagens, momentos em que há uso de trilha sonora característica do gênero suspense, entre outros aspectos, se mesclam em prol de uma construção narrativa leve e prazerosa.

Por aspectos como estes, Fuga de Nova York se configura como um importante registro audiovisual que se enquadra em discussões acerca do aspecto do entretenimento, como também de uma peça de estudo social. Assim, vale o esforço para se direcionar o olhar para a discussão crítica extremamente relevante presente no filme de John Carpenter.

CRÍTICA: Cosmopolis

Cosmopolis, 2012, David Cronenberg

Por Bia Bruno


Cosmopolis é um filme do ano de 2012, dirigido por David Cronenberg, baseado no livro de mesmo nome, publicado em 2003, de Don DeLillo. 

Eric Packer (Robert Pattinson), um jovem de 28 anos multimilionário, quer ir a uma barbearia cortar o seu cabelo, e mesmo sendo avisado pelo seu segurança particular de que não seria seguro atravessar a cidade, Eric decide que vai de qualquer forma e assim começa a narrativa do filme. Desde esse momento, já é possível perceber a ideia que Cronenberg quer passar com o protagonista: a de um capitalismo poderoso, egocêntrico e sem limites. O filme mostra o declínio pessoal do personagem principal após fazer uma aposta errada na Bolsa e quanto mais tempo passa, mais pobre e mais desestabilizado ele fica; o que faz com que ele comece a quebrar a compostura “gelada” que ele mantém pelo seu status social e tente ultrapassar limites, como os do prazer e da dor.

A limusine branca de Eric, que é usada quase como cenário fixo, onde a maior parte do filme é localizada, é representativa de um mundo só dele, como se houvesse uma bolha o protegendo da realidade, e conforme a narrativa vai se desenrolando, a bolha de Eric vai aos poucos se degradando até estourar. O enclausuramento de Eric na limusine é causador de desconforto ao espectador, principalmente pela escolha de ângulos e planos que o diretor faz; utilizando diversos close-ups para dar a impressão de sufocamento e aperto. 

Cada um dos personagens que vêm a entrar em contato com Eric Packer é um representante da sociedade capitalista, que é ao mesmo tempo fria e calculista, como a sua esposa, Elise Shifrin (Sarah Gandon), e desequilibrada e fracassada, como o personagem de Paul Giamatti, Benno Levin.

Mesmo com uma narrativa linear, é pouco convencional e de difícil entendimento pelos seus diálogos complexos e filosóficos, Cosmopolis requer uma atenção especial para ser compreendido. O filme é tanto uma crítica ao capitalismo quanto uma demonstração do quão volúvel é este sistema econômico e a sociedade regida por ele, dando ao longa um aspecto de crise existencial.

CRÍTICA: O Diabo, Provavelmente

Le Diable, Probablement, 1977, Robert Bresson

Por Bia Bruno


Le Diable, Probablement, lançado no ano de 1977, incorpora perfeitamente o sentimento de sua época: após Maio de 1968, tudo o que era possível no planeta, já foi feito, sentido ou lutado, deixando os jovens desta nova geração com o sentimento de um completo vazio existencial, que nunca poderá ser preenchido com absolutamente nada, fazendo com que, mesmo se relacionando, estes adolescentes não criassem vínculos muito estreitos uns com os outros, ou com qualquer outro ser ou objeto, seja ele material ou imaterial.

O filme representa a mais completa definição do blasé, seus personagens – mais especificamente, Charles, interpretado por Antoine Monnier – foram tão excessivamente estimulados pelas experiências afetivas, intelectuais, sociais, entre outras, da geração prévia a deles que a única solução para esta falta de sensibilidade que sentem para com tudo e todos no mundo é o suicídio. O único momento em que o espectador pode ver algum tipo de emoção transparecer na mise-em-scène dos personagens é quando Alberte, interpretada por Tina Irissari, chora; de resto, são 95 minutos de expressões faciais e corporais quase nulas, deixando ambígua a interpretação de todo o elenco – ou são ótimos atores que conseguiram captar muito bem a indiferença de seus personagens para com a existência na terra, ou são péssimos atores que tiveram muita sorte de participar de um filme que retrata a insensibilidade daquela geração para com o mundo.

Lento e apático e com uma narrativa “zumbi”, Le Diable, Probablement faz com que o espectador entre no corpo destes jovens do final dos anos de 1970, e o quanto mais ele mergulha no universo do filme de Bresson, mais ele também começa a achar que a única solução para a sua vida, é a morte.

CRÍTICA: O medo devora a alma

Angst essen seele auf, 1974, R.W. Fassbinder

Por Vitória Alves


O longa dirigido e escrito por R. W. Fassbinder, um dos principais representantes do Novo Cinema Alemão, é inspirado em “Tudo o que o céu permite” de 1955, filme do diretor Douglas Sirk, que foi uma das maiores influências de Fassbinder, que dedicou a segunda fase de sua cinematografia a filmes com tons melodramáticos, marca de Sirk. 

O filme alemão, como em “Tudo o que o céu permite”, acompanha a relação de um casal. Emmi, que está nos seus 60 anos e Ali, que no máximo está na casa dos 40. Fassbinder, porém, vai mais fundo na questão das diferenças. Ali também é estrangeiro, de Marrocos sai de seu país à procura de emprego, em uma Alemanha que os árabes eram vistos com grande preconceito. 

Independentemente da temática melodramática Fassbinder consegue imprimir na narrativa suas características pessoais. Conseguimos observar elementos peculiares de sua primeira fase, quando a Nouvelle Vague era o movimento que o entusiasmava a filmar. 

A título de exemplo desses elementos peculiares: A interpretação dos atores que até em momentos de grande emoção chega a ser apática. Planos que jamais seriam vistos em um filme clássico. As cenas com um passo mais lento, com longos silêncios. A trilha sonora bem suave, sem dar tons às cenas, diferente do filme de Sirk onde a trilha sonora acompanha as cenas marcantes. 

Entretanto também existem semelhanças nas duas narrativas, como as cores que são bem saturadas, embora não tendo um significado fixo para com os personagens, se faz presente durante todo o filme. Na cena em que Emmi e Ali dançam pela primeira vez eles são banhados por uma luz vermelha que é acesa na pista de dança, uma possível interpretação seria a paixão e o amor futuro. Os reflexos e uso de espelhos também são constantes nas duas histórias.

Fassbinder não mostra soluções para os problemas que são trazidos à tona no longa, ele simplesmente os retrata, sem condescendência. Ele faz o problema ser real, ser visível, esperando a reação do público acostumado com filmes prontos, que se resolvem sozinhos, filmes que não levantam reflexões críticas. E é aí que sua genialidade transparece. A história de Emmi e Ali consegue traduzir perfeitamente essa intenção do diretor alemão.

CRÍTICA: O diabo, provavelmente

Le diable probablement, 1977, Robert Bresson

Por Isabelle Ramos


Um sufocante estilo de vida moderno. Robert Bresson traz em O diabo, provavelmente (1977), o pessimismo de viver na modernidade através de Charles. Diante de uma crise existencial que o assola, não consegue se aprofundar em relações sociais. Tudo ao seu redor o desmotiva.

O longa-metragem traça o percurso de Charles em busca de uma razão para tudo que lhe aflige. Vagando, tentando realizar “qualquer coisa que seja” em busca de algum sentido para continuar a viver uma vida desconexa com os seus anseios ou não-anseios. Até mesmo o estilo de filmagem dá esse tom vago, a câmera que foca em espaços vazios por um longo período pode retratar a falta desse “algo” na vida do personagem. Inserido numa sociedade que agora vive de maneira mecânica e cheia de individualismos, em que se instalou um verdadeiro “mal-estar”, contribuindo para que ele se sinta ainda mais deslocado.

Ao longo do filme, o que se percebe, é a descoberta de Charles, para o que Freud já havia citado em “O mal-estar na civilização”. Apesar de o homem estar sempre em busca de uma felicidade, e apesar de todos os aparatos criados pela modernidade para que essa felicidade seja alcançada, o homem moderno não consegue ser feliz em sociedade, cria-se um ideal de felicidade, mas que não se sabe ao certo como tê-la. Como se o pessimismo, a desordem do “ser” fosse intrínseca a sua existência. Então, tudo que esse “ser” faz, é continuar essa busca incessante e cheia de frustrações.

E é essa busca que Charles, em O diabo, provavelmente, não consegue sustentar. Ele não consegue representar esse “ser” que acredita em um mundo de idealizações. Acreditar que algo vai mudar não faz parte do seu “eu niilista”. O poder, o dinheiro, a tecnologia, a religião e até mesmo o amor faz com que o personagem se sinta infeliz, traçando o destino do personagem para o que o espectador já sabe antecipadamente, a morte.

CRÍTICA: Metrópolis

Metropolis, 1927, Fritz Lang

Por Mariana Brandão


Metáfora da dominação, Metropolis é um ícone dos filmes de ficção e um símbolo cinematográfico da luta de classes, ainda que lançado em 1927. A cidade, o proletariado, a revolução e os governantes são abordados de forma contundente e trazem consigo uma ligação com os tempos atuais de um jeito singular.

Joh Fredersen, poderoso homem que governa Metropolis, cidade que funciona perfeitamente graças ao trabalho árduo de milhares de trabalhadores, tem um filho, Freder, que descobre a condição dos operários na busca por uma mulher que surge inesperadamente nos Jardins Eternos, local onde os filhos dos ricos costumam se divertir (localizado no Clube dos Filhos). Maria, a mulher que Freder procura no mundo dos trabalhadores, cria pouco a pouco, com seu discurso um tanto cristão – por pregar a vinda de um mediador para tirá-los daquela vida miserável –, a esperança de uma revolução do proletariado, levando-os a confiar plenamente nela, a única chance de melhoria de vida que eles têm.

Além da busca de Freder, Metropolis também é cenário da invenção de uma mulher-robô pelas mãos do “cientista louco” Rotwang, que seria, primeiramente, a cópia de Hel, a mãe de Freder, falecida esposa de Joh e amante do inventor, mas torna-se, pela necessidade do poderoso governante, aquela que vai destruir a esperança dos trabalhadores.

O enredo não seria possível sem uma paisagem que favorecesse o desenvolvimento da história: uma cidade movida pelas máquinas, com tantas construções imensas, carros e aviões circulando, que segrega os trabalhadores do restante da sociedade. Há, portanto, uma clara imagem da cidade industrializada e desenvolvida que, apesar de sê-la, se fundamenta no trabalho exploratório de homens, cujos moram bem abaixo da terra, separando o mundo evoluído da miséria daqueles que o sustentam.

A cidade dos operários é um imenso complexo de edifícios, que mais parecem cubículos empilhados – fato acentuado pela iluminação do cenário –, bem abaixo da terra, representando, portanto, a segregação daqueles que trabalham e sustentam a cidade dos burgueses e ricos que reinam em cima. Lá, o único lugar de uso comum é um espaço onde existe uma sineta de alerta, configurando assim a falta de interação até mesmo entre os trabalhadores, que parecem uma massa de máquinas programadas para servir e se confundem com as reais máquinas que eles mesmos operam. Essa representação do proletariado é bem semelhante ao que Charles Chaplin vai retratar em Tempos Modernos (1936), com sua ironia e comédia, onde os trabalhadores são submetidos ao regime extremamente exaustivo de uma tarefa repetitiva.

A verticalização da cidade ocorre tanto na instância dos mais ricos, aqueles que estão em cima da terra, com suas grandiosas construções e “espaços públicos” – o Clube dos Filhos, por exemplo –, como também no proletariado submisso, que mora nos cubículos empilhados abaixo da terra. Entretanto, é possível encontrar uma figura que representa um contraponto a essa arquitetura da cidade, uma casa isolada, que não pertence ao contexto de Metropolis e, portanto, faz sentido que Rotwang, o cientista que vive à margem da sociedade, compenetrado nos seus estudos e invenções, seja o morador desse lugar. É o único momento do filme que é possível ver alguma construção que não é grandiosa ou vertical.

O personagem de Rotwang também simboliza a ascendente tecnologia, visto que ele cria uma mulher-robô, que seria capaz de guiar os homens no futuro, mas acaba sendo um objeto de manipulação das massas revoltadas.

Além do enredo e do belíssimo cenário, é preciso mencionar a direção de arte de Metropolis como um importante e bem feito trabalho. Para mostrar a cidade e sua verticalização, as técnicas de iluminação, produção e fotografia são dignas de tal grandiosidade bastante citada. Essa paisagem bastante atual, mas idealizada em 1927, foi fruto de um trabalho detalhado em estúdio e maquetes, trazendo a realidade futurística de forma extraordinária.

Portanto, é possível dizer que a arquitetura desenhada para ser cenário dessa narrativa estabelece e facilita a manipulação de certa parte da sociedade, aquela que é responsável por seu funcionamento, mas ainda assim não é valorizada, instituindo o medo como uma arma de controle para manter certas pessoas em cima e outras em baixo.

CRÍTICA: A mulher sem cabeça

La mujer sin cabeza, 2008, Lucrecia Martel

Por Lorena Fragoso


A noção de que o sentimento de culpa é sempre nocivo para quem o possui faz parte do senso comum. Segundo Freud, em “O mal-estar da cultura”, o sentimento de culpa é uma “variação topográfica da angústia”. Tal angústia, quando atrelada à dúvida de não saber o que realmente aconteceu, abala a sanidade do indivíduo a ponto de levantar questionamentos constantes sobre o que si mesmo e sobre o que é real ou não.

Essa é a situação apresentada por Vero, protagonista do filme de Lucrecia Martel, lançado em 2008. Após um acidente que a faz passar por cima de algo/alguém no meio da estrada, a personagem parece realmente perder a cabeça diante da confusão que se passa dentro de si, sem saber se atropelou um animal ou um ser humano. O papel estrelado por Maria Onetto reflete uma mulher perdida, que acaba por esquecer o número do seu escritório e até mesmo a sua função no trabalho, quando chega ao consultório onde trabalha como dentista e pensa ser apenas uma paciente, entre outras situações onde demonstra não estar consciente de si e do que acontece em sua volta. Tendo como base a ideia de que o espectador se personifica e se vê refletido em personagens diante de certas situações, durante todo o filme o sentimento de culpa e de dúvida é transferido para quem o assiste. Logo após o acidente, a câmera mostra um corpo estirado no chão, aparentemente de um animal que pertencia às crianças mostradas previamente brincando naquele mesmo lugar. O espectador, convencido daquilo que viu, passa a duvidar de si mesmo quando Lucrecia Martel faz um trabalho brilhante de suspense crescente, revelando lentamente informações que de alguma forma estão interligadas ao acidente. A tensão é intensificada na mesma proporção da angústia sentida pela personagem.

A atenção da diretora aos detalhes enriquece a história em níveis absurdos. Dentro do carro de Vero, antes do acidente acontecer, é possível enxergar a marca de uma mão de uma criança que tem destaque no vidro devido ao ar empoeirado da estrada. Após o acidente, a marca daquela mão é substituída por outras duas, posicionadas como se estivessem estendidas. Além disso, durante todo o filme é possível perceber que Vero está sempre em evidência enquanto os acontecimentos ao seu redor, seja em cenas onde ela está no plano de fundo ou à frente de outros personagens, estão sempre desfocados, simbolizando exatamente como ela está se sentindo naquele momento. Perdida. Sem foco. Também é válido destacar a presença freqüente de cenas onde a fotografia enquadra a personagem apenas dos ombros pra baixo, como se ela realmente estivesse sem cabeça; destacando-se aqui a cena onde Vero observa angustiada pela janela quando o seu marido retira a carcaça de um animal de dentro de casa.

Lucrecia Martel nos dá um leque de reflexões e dúvidas como se nós mesmos fôssemos cúmplices daquele roteiro, daquela história. O espectador se vê tão imerso na inquietude quanto Vero, que ao final do filme tinge seus cabelos de outra cor simbolizando um novo momento de sua vida, onde tudo aquilo foi deixado pra trás. Entretanto, o filme deixa em aberto todas as perguntas que foram feitas: não se sabe realmente o que aconteceu naquele acidente; de quem ou de quê era o corpo estendido na estrada. Não se sabe se a noite vivida no hotel após o acidente realmente aconteceu ou foi apenas um delírio, especialmente pelo jogo de luz utilizado onde o seu cunhado está frequentemente em meio às sombras. Perdemos a cabeça junto com Vero e seguimos em frente ao vermos a tela escurecer, igual aos seus cabelos, deixando pra trás toda a culpa e responsabilidade que aquela história nos trouxe. 

CRÍTICA: Mad Max: Estrada da Fúria

Mad Max: Fury Road, 2015, George Miller

Por Mariana Brandão


Insano. Foi a primeira coisa que pensei quando os créditos de Mad Max Estrada de Fúria começaram a subir. Um filme completo, com emoção do primeiro ao último segundo, dialogando com a força da presença feminina na sociedade atual, com uma atmosfera ligada aos antigos filmes. Max Rockatansky segue à procura de sua redenção e é disto que o filme trata: a busca em compensar os erros do passado.

É inevitável sentir o desespero de Max em relação ao seu passado no início do filme, quando se apresenta ao espectador. Os fantasmas daqueles que ele deixou de salvar atormentam sua jornada, sendo um fardo a todo o momento. Entretanto, apesar de ser o personagem que dá nome ao filme, e a toda a sequência, Max parece ser apenas um coadjuvante, enquanto a saga retratada na história é a da Imperatriz Furiosa, mulher forte e significativa para Cidadela, único lugar num planeta pós-apocalíptico em que há uma chance de viver – fato esse que é essencial para a resolução da trama. Contudo, se enganam os que pensam que Mad Max Estrada da Fúria é a história de Furiosa, quando é, na verdade, a jornada de redenção de Max e, por conseguinte, de Furiosa.

O que talvez tenha me deixado mais impressionada, além do conjunto do filme em si, foi o cuidado de tratar a trilha sonora como um elemento diagético poderoso para identificar certos momentos na trama. A guitarra e os tambores tocados por seres "meia-vida", que acompanham as máquinas de guerra durante as perseguições, dão um aviso de que os guerreiros estão chegando. Até mesmo é acentuada quando o ápice das batalhas surge, intensificando a emoção do filme. De fato, o “meia-vida” que toca guitarra tornou-se um ícone cômico da obra, pois, com uma grande perseguição acontecendo e uma enorme matança, quem iria se preocupar em tocar música?

Com o roteiro bem construído, organizando narrativamente e trazendo elementos que vão ajudar os personagens em certos momentos da história, e com uma linearidade essencial para um filme de ação, é possível perceber todos os pontos de virada importantes, já que são bem delineados, assim como o propósito de cada personagem e suas ações. O sensacionalismo digno de blockbuster fica por conta das grandes explosões, amplos cenários – o filme foi gravado no deserto Namib, no sudoeste africano –, que lembram até mesmo os filmes do gênero Western, tanto na fotografia como no tema (a perseguição, nesse caso), e o romance (tosco) que se desenrola no meio da obra – protagonizado por Nicholas Hoult, conhecido por seus papéis de jovem em crise como em Meu namorado é um zumbi e Skins, na pele de Nux –, mais como uma tentativa de dizer ao espectador que ainda existe amor entre aquelas pessoas em condições sub-humanas.

Ainda com todas suas boas características, Mad Max Estrada da Fúria tem seus momentos clichês, como na cena em que Immortan Joe pega seu carro e dirige em busca de uma das suas esposas. A cena é, basicamente, um plano marcando a face de Immortan, com um rápido zoom in na partida do veículo: clichê que lembra filmes como os clássicos hollywoodianos, com cenas frontais do motorista no carro, mas com um toque de ação de filmes como Velozes e Furiosos.

Alguns podem até destacar a importância dada à Imperatriz Furiosa, chamando o filme de feminista, mas não acredito que chegue a ser uma apologia. Dentro do universo do enredo, as mulheres férteis são os bens mais importantes, juntamente com a água ("Não se tornem viciados em água, vocês sofreram na ausência dela"), o que faz de Furiosa uma das personagens centrais, já que é ela quem vai se arriscar a contrariar Immortan e salvar as mulheres. Destacaria, portanto, a força da presença feminina no filme, revelando a importância do gênero para a sociedade e até fazendo uma reflexão de como elas estão sendo tratadas atualmente. Furiosa se tornou uma das minhas personagens favoritas e uma inspiração de fato.

Para quem tiver chance ver em 3D e IMAX: vá. Apesar de o filme ser igualmente bom sem esses recursos, a experiência se torna mais intensa com eles. Definitivamente um dos melhores filmes do ano e uma obra excepcional de George Miller, que há tempos planejava uma continuação para a sequência, mas vários obstáculos lhe impediram de conseguir. 

Mad Max já é uma das maiores bilheterias do cinema e, não por isso, mas sim pelos motivos acima escritos, vale a pena ser visto.

CRÍTICA: O amor é mais frio que a morte

Liebe ist Kälter als der Tod, 1969, Rainer Werner Fassbinder 

Por Lorena Fragoso


Em seu filme de estréia, Rainer Fassbinder trata das relações pessoais da maneira mais fria que o pós-guerra poderia oferecer: rostos que não sentem, não se expressam; corpos que vagam em piloto automático realizando ações sem esperar por reações.

A história acompanha Franz, personagem interpretado pelo próprio Fassbinder, um bandido que trabalha por conta própria e é requisitado por um sindicato de criminosos. Recusando o convite em prol de sua autonomia, conhece Bruno, membro do sindicato que recebe ordens para segui-lo. Bruno o encontra escondido com sua noiva, Joanna, uma prostituta que acaba por participar de roubos a lojas comerciais, bancos e missões de assassinatos com os dois. O triângulo que, de amoroso, não possui nada: o relacionamento de Franz e Joanna é distante, onde em nenhum momento se vê nenhum sinal de afeto ou desejo presente. Ao deitar-se no chão e ter sua cabeça desabotoada por Bruno, Franz se ofende com a risada que a sua noiva dá, sentindo que ela envergonhou o seu amigo e esbofeteando-a no rosto como punição.

Os olhos dos personagens estão, na maioria do tempo, cobertos por óculos escuros, como se os acessórios fossem parte do fardamento do seu trio fora-da-lei. Seus sorrisos são inexistentes, sendo substituídos por cigarros, muitos cigarros na boca dos personagens. Matam, roubam e são postos em situações de risco na maior naturalidade e tranqüilidade possível, carregando rostos vazios e expressões corporais rígidas sintetizando a frieza de sua realidade. O tom de monotonia contido nos personagens se faz ainda mais presente no filme do filme, onde segundos parecem minutos e muitas cenas são tomadas por silêncios e atitudes naturais, como um longo take onde o trio caminha ou quando os personagens simplesmente fumam e manuseiam suas armas como se nem percebessem suas próprias existências.

O filme teve baixo valor de produção, possuindo locações simples com direção de arte mais simples ainda. O figurino do personagem de Fassbinder é o mesmo do início ao fim, tendo a imagem do bandido autônomo Franz refletida em sua jaqueta de couro e calças justas. Joanna é a que mais tem variedade em suas roupas, e ainda assim só possui três figurinos distintos; enquanto Bruno parece ter sido retirado de um filme noir, comum chapéu e um sobretudo negro que lhe dão um ar de detetive. O que se destaca, de fato, é o que o diretor foi capaz de fazer com tanta simplicidade, dando ênfase a planos simétricos e bem enquadrados e uma fotografia que consegue transformar atitudes banais do personagens em belas retratos sobre a frieza que pode existir nas relações humanas.

Por mais que lento que o ritmo do filme seja, é de se admirar a competência estética inovadora de Fassbinder que, com uma matéria bruta simples, conseguiu transformar em obra-prima um dos filmes mais importantes do Novo Cinema alemão.