Poucas coisas são mais almejadas pelos artistas que a beleza. Seja qual for a maneira como ele faz a sua arte, a beleza é o ideal a ser alcançado. Ele acredita que o que produz é belo, acredita que o belo pode estar no feio, que o belo pode estar no nada. Ele aprecia e valoriza o que é lindo e, enquanto arte, é o que deseja doar para o mundo.
O protagonista de Morte em Veneza é um artista, e como tal não poderia querer diferente. Gustav von Aschenbach encontra-se num dilema pessoal, confrontando sua arte e seus desejos mais profundos, à medida que tenta preservar sua integridade física e moral. Músico de sucesso, respeitado aonde quer que fosse, Aschenbach toma um tempo de descanso e decide se instalar em Veneza.
A ideia de revigorar-se vai por água abaixo quando no hotel que está hospedado, se depara com a forma viva mais bela em sua plenitude, um jovem polaco que está de férias com a família. A partir daí ele encarcera dentro de si um sentimento que antes só experimentara em seu ofício, o desejo pela perfeição.
Transposição da obra célebre de Thomas Mann para o cinema, Morte em Veneza teve muito a ganhar com a abordagem narrativa e estética de Luchino Visconti. De um texto complexo e cheio de nuances, o cineasta entrega um filme cujo enredo é simples, mas que é forte o suficiente para segurar o espectador e satisfazê-lo.
A Veneza de Visconti não é romantizada, como se esperaria. Ele não opta por mostrar tomadas de coberturas com belos planos gerais dos canais e lagoas da cidade, que todos os anos atraem milhares de turistas apaixonados. Ainda que tenha oportunidade como, por exemplo, quando Aschenbach resolve partir da cidade e passa pelos canais, nós assistimos um longo plano fechado no rosto martirizado do personagem enquanto sentimos o balanço da balsa pelas águas.
Ao longo de todo o filme, a câmera de Visconti passeia pelos grandes cenários da produção, seja pelos espaços suntuosos do hotel, onde o protagonista vê pela primeira vez o jovem, ou pelas areias da praia onde ele passa boa parte do tempo. A câmera observadora para em cada grupo de “figurantes” dispostos pelo espaço, sendo até possível compreender o que eles estão falando, fortificando a ideia de que o personagem é um tanto observador.
É numa dessas passeadas que Aschenbach se depara com o garoto Tadzio e desde então não desgruda mais os olhos dele. Durante toda a projeção seu olhar está sempre voltado para aquele objeto de amor platônico e para tudo que está ao redor dele. É interessante notar aqui como a ideia da homossexualidade permeia todo o filme, mas nunca se faz importante. A aparência andrógina do ator Björn Andrésen torna isso mais evidente. A atração de Aschenbach pelo jovem fica no campo da idealização, da perfeição, quase como um endeusamento de uma escultura de Michelangelo.
A busca pela perfeição não é só uma alcunha para a beleza do garoto, está relacionada também a perfeição ideológica que Aschenbach aspira para si mesmo, que ele sempre aspirou e colocou como base em sua vida. Sua rigidez moral sempre caminhara lado a lado com seu comportamento, e ali não seria diferente. Num dos flashbacks em que o vemos discutindo arduamente com um amigo questões ligadas à filosofia e a arte, Aschenbach escuta algo que não pode negar: “Quer que seu comportamento seja tão perfeito quanto sua música”.
Esses flashbacks, aliás, fazem um válido panorama do que levou o protagonista até aquele hotel praieiro em Veneza. Eles nos aproximam do personagem – funcionando mais que os excessos de zoom – nos fazendo entender os porquês do comportamento daquele homem de meia-idade.
A atuação segura e intensa de Dirk Bogarde é fundamental para compor o complexo personagem e seus conflitos internos, e juntamente com a trilha sonora de Gustav Mahler, repleta de virtuosismo, somos transportados para todo esse momento angustiante da vida de um homem.
Ao passo que o filme vai chegando ao fim, encaramos um Aschenbach cada vez mais decadente em si mesmo. Nada evoluiu na não-relação entre ele e Tadzio, eles sequer trocam uma palavra. Aschenbach tem ataques de fúria, corre atrás de cuidar da aparência, se preocupa com o bem-estar do garoto num rompante de alucinação, definha completamente sobre as águas venezianas.
Morte em Veneza acaba por levar a refletir sobre o artista como pessoa. Aqui a busca pela perfeição parece nunca findar, mesmo quando ele desiste da procura, o poder é imponderável demais para ceder.
Nenhum comentário:
Postar um comentário