Fahrenheit 9/11, 2004, Michael Moore
Por Evandro Lira
Michael Moore e seu cinema dividem opiniões desde o início da sua carreira, lá em 1989 com o documentário Roger e Eu. Conhecido e mitificado pela sua postura crítica em relação à figura política e econômica dos Estados Unidos, que transcende as fronteiras de todo o mundo, Moore escancara em suas obras tudo que há de mais sórdido nos bastidores dessa grande potência.
E não é mesmo tão difícil arranjar admiradores e inimigos quando se vai por esse viés. Como ensina uma famosa sabedoria popular: política, tal qual gosto, futebol e religião, não se discute. Gostar ou não dos filmes de Michael Moore é basicamente separar esquerda de direita, democrata de republicano, comunistas de capitalistas... e nós não podemos cair nesse erro, afinal se as coisas fossem tão simples assim tudo isso não seria discutível.
Tocando na ferida do povo americano a cada novo filme ou livro (Moore também é escritor), ele usa fatos trágicos que ocorreram, seja na sua pequena cidade do interior ou no grande centro financeiro do país, como ponta pé para questionar o que precisa ser questionado.
É obvio que não seria diferente no seu Fahrenheit 11 de Setembro, 2004. Com um Oscar na prateleira (por Tiros em Columbine, 2002), um público formado, e as atenções voltadas para seus novos trabalhos, Michael Moore destrincha os acontecimentos que levaram ao “maior atentado terrorista da história” e principalmente as consequências que dele se fizeram. Está lá o seu habitual sarcasmo afiado, seu total senso de parcialidade, sua narração maliciosa e sua estética requintada.
O filme abre contextualizando o espectador nas eleições presidenciais americanas de 2000, na qual o vice-presidente Al Gore disputava com o governador do Texas, George W. Bush. No primeiro minuto, Moore já sugere que a vitória de Bush foi resultado de fraude eleitoral, polêmica de caráter amplamente discutida pelo povo americano.
O então Presidente Bush é quase que o pro-antagonista de Fahrenheit, sem dúvidas. Mostrando gravações de arquivo de um Bush confiante, debochado e infantil, diferente do que se costuma ver nos discursos políticos, Moore nos mostra que os primeiros oito meses de mandato do presidente não foram muito bem sucedidos. Crises na economia, no congresso e nas ruas, resumem o 2001 dos EUA. E dando início ao seu humor elaborado, Moore nos mostra que a solução encontrada por W. Bush foi tirar umas férias. Tem-se então uma sequência divertida, com trilha sonora animada, montagem rápida, um Bush sorridente e animado, mas... não por muito tempo.
Os créditos do filme se dão paralelamente com cenas de jornalistas e políticos – incluindo o próprio Bush – se maquiando antes de alguma aparição pública na tv. Percebe-se uma sutil investida do cineasta para dizer o quão bons atores são esses personagens reais. Após isso, uma tela preta toma o filme por uns minutos, e só conseguimos ouvir gritos de horror, ambiente, barulhos de sirenes e é impossível não remetermos imediatamente ao 11 de setembro. Moore não mostra em nenhum momento das duas horas de duração aquelas cenas que chocaram o mundo das torres em chamas ou dos aviões se chocando, afinal nós estamos cansados de vê-las. O que importa aqui é o que causou nas pessoas, é o sentimento, Moore vai fundo nas emoções do povo, de forma objetiva, mas não simples. Como prova, o que se segue à esse momento são closes das pessoas nas ruas e suas reações naquela manhã do atentado.
Por incrível que pareça, o filme não é sobre a tragédia do 11 de setembro, e sim sobre todo o contexto dessa e à partir dessa. Fahrenheit é sobre a política do medo que se estabeleceu não só nos Estados Unidos, mas em todo o planeta. É sobre como o ocidente passou a olhar pra si mesmo no início desse século que começava, e sobre como desde então encaramos de forma tão pré-julgadora os motivos dos outros, só pensando no nosso bem-estar e segurança.
O documentário aborda as verdadeiras razões do Governo Bush invadir o Afeganistão em 2001 e o Iraque em 2003, que segundo o filme, se deram mais pelos interesses particulares da indústria de petróleo dos EUA que do interesse em proteger os americanos do “inimigo”. Moore ainda especula uma possível relação de negócios entre a família de George W. Bush com diversas famílias árabes, incluindo a família Bin Laden, causa essa que levou o governo a liberar parentes de Osama logo após os atentados sem qualquer tipo de interrogatório.
Focando na “guerra ao terror”, podemos ver retratos impiedosos causados pela invasão no Iraque, com milhares de civis mortos, incluindo crianças – Moore não nos poupa de cenas como essas. Ele nos mostra também um lado pouco explorado desse contexto, o dos soldados e suas famílias. Sim, Moore não é anti-americano, pelo contrário, os americanos são vítimas de todo um sistema nos seus filmes.
Conhecemos o Patriot Act num dos momentos do longa, um plano do governo que se livrou de algumas amarras da Constituição para se tornar um ato legal. Ele promove a espionagem, fere gravemente os direitos civis e humanos, se dando o direito de obter qualquer informação de interesse do governo. Moore repudia o ato claramente, e mostra que isso foi uma escolha imposta ao povo americano pelo governo com base em toda a sua política do medo.
Michael Moore realmente explora as emoções do espectador com todos os artifícios possíveis, como o uso da trilha sonora melancólica nos momentos certos, os closes nos rostos das pessoas entrevistadas, nas perguntas extremamente persuasivas que faz a elas e etc.
Seu senso de montagem é brilhante, toda a estética do seu filme é precisa e eficiente. O documentarista sabe, melhor do que ninguém, como fazer perguntas constrangedoras sem a menor vergonha na cara, como fica claro no momento em que ele está em frente ao congresso nacional, abordando os congressistas e pedindo os nomes de seus filhos para alistá-los na guerra. É cruel, mas revigorante ao mesmo tempo.
Moore é facilmente acusado de manipulador, oportunista, anti-ético, e é difícil não concordar com isso, pois me parece óbvio. No entanto, acho fácil assumir que Moore não é hipócrita, ele faz tudo isso sem maquiagem. Usa a ferramenta que melhor domina, o cinema, para dizer o que pensa, e ora, não é isso a arte?
O filme acaba por levantar uma discussão interessante sobre o próprio cinema, no caso sobre o gênero documentário: a necessidade de documentar sem intervir, sendo imparcial. Fica muito claro assistindo Fahrenheit, e todos os outros do cineasta, que isso não se prova correto. Se Moore não faz documentário, o que ele faz? A neutralidade pode sim estar presente num filme documentário, se assim for a sua proposta, mas eu particularmente acho essa uma tarefa difícil. Nem a própria imprensa, que tem o discurso de mostrar o fato pelo fato cumpre esse papel, e aí está um dos maiores perigos dos meios de comunicação de massa e também um dos maiores méritos de Michael Moore. Ele mostra o que quer, deixando extremamente claro que é nisso que ele quer que você acredite.
Não é na parte jornalística que Michael Moore tem os seus melhores momentos, e sim nos aspectos narrativos dos seus filmes. O mais interessante de Fahrenheit não é quando os fatos são mostrados, e sim quando casos são expostos, desabafos são vistos, ouvidos e sentidos. Michael Moore não é só um cidadão com uma causa, ele é um artista, um homem do entretenimento, um contador de crônicas sociais.