15 de setembro de 2015

CRÍTICA: PACIFIC

Pacific, 2009, de Marcelo Pedroso

por Victor Leite



Espelho de três lados


Existe a teoria que cada pessoa desempenha um papel. Ninguém é quem diz ser, somos todos personagens, construídos no dia a dia, a cada nova experiência, a cada novo acontecimento. Mas o que acontece quando se adiciona uma câmera a isso? Uma metalinguagem interessante, onde o personagem interpreta, durante sua exposição àquele aparelho tecnológico, outra pessoa.

Em Pacific, de Marcelo Pedroso, somos apresentados aos passageiros do cruzeiro que dá nome ao filme, sendo esse um cruzeiro com programação de ano novo e destino a Fernando de Noronha. Durante esse trajeto, alguns dos passageiros filmaram toda a sua experiência de 7 dias e 6 noites. Através dos produtores, Pedroso conseguiu as filmagens de algumas dessas pessoas, mas sem avisá-las de antemão que as filmagens seriam utilizadas em um documentário.

As imagens que se vê durante o filme podem ser consideradas uma espécie de interpretação da classe média pela própria classe média. Hoje em dia, para muitas pessoas, o ato de viajar em um cruzeiro é uma meta a ser alcançada. Através da montagem do filme, podemos perceber que os alvos da câmera (e também as pessoas que a operam) alcançaram essa meta e parecem felizes com isso. Mas essa felicidade é dúbia. Através da lente da câmera, cada pessoa filmada desempenha certo papel. Livres de qualquer modéstia ou pudor demasiado, eles tentam passar nas imagens, que provavelmente iriam virar lembranças salvas nos computadores, um senso de realização para que, quando vissem esses vídeos no futuro, pudessem sorrir e se lembrar com nostalgia da tal viagem a bordo do Pacific. Afinal, por que pudor quando se está fazendo um vídeo apenas para os olhos da família?

A única performance realista durante o filme é de uma senhora, que inadvertidamente é filmada em seu sono. Não há nada no filme mais autêntico. Os personagens se desenrolam entre o homem piadista, os pais enjoados, o casal romântico (que fazem questão de retratar seu romance na câmera, como em um momento em que eles se filmam de mãos dadas olhando para o horizonte), entre diversos outros. Nem mesmo as crianças fogem de interpretar outros durante o tempo em que a câmera os captura. Há certo fascínio e certo receio com a imagem que se deve e a imagem que se quer passar para quem se assiste. As crianças querem chamar a atenção da câmera. O piadista quer fazer o espectador rir. O casal quer tomar um vinho enquanto assiste a seu registro da viagem. E assim cada pessoa desenvolve sua própria narrativa dentro daquela peça visual.

Outro ponto a se considerar é o fato do compartilhamento dessas imagens com o diretor do filme. Segundo relatos, os participantes pareciam bastante entusiasmados para participar do projeto quando ficaram sabendo do que se tratava. Mas qual seria o limite de exposição? Estariam todos eles dispostos a abrir sua intimidade e mostrar seu cotidiano (ainda que levemente alterado, pelo local, pelas pessoas ou outros fatores) para uma experiência do diretor ou para divertimento (ou diferentes reações possíveis) da plateia? Qual o limite da privacidade?

O filme é válido como uma experiência visual, que nos mostra como nos comportamos quando achamos que ninguém mais está olhando. Mas a partir do momento em que esse alguém olha, a imagem toma um significado diferente. Ela vira um relato privado em que se está xeretando, mesmo que com consentimento, e que pode refletir uma imagem da sociedade que muitos preferem não querer ver.

14 de setembro de 2015

CRÍTICA: Morte em Veneza

Morte a Venezia, 1971, de Luchino Visconti

Por Evandro Lira


Poucas coisas são mais almejadas pelos artistas que a beleza. Seja qual for a maneira como ele faz a sua arte, a beleza é o ideal a ser alcançado. Ele acredita que o que produz é belo, acredita que o belo pode estar no feio, que o belo pode estar no nada. Ele aprecia e valoriza o que é lindo e, enquanto arte, é o que deseja doar para o mundo.

O protagonista de Morte em Veneza é um artista, e como tal não poderia querer diferente. Gustav von Aschenbach encontra-se num dilema pessoal, confrontando sua arte e seus desejos mais profundos, à medida que tenta preservar sua integridade física e moral. Músico de sucesso, respeitado aonde quer que fosse, Aschenbach toma um tempo de descanso e decide se instalar em Veneza.

A ideia de revigorar-se vai por água abaixo quando no hotel que está hospedado, se depara com a forma viva mais bela em sua plenitude, um jovem polaco que está de férias com a família. A partir daí ele encarcera dentro de si um sentimento que antes só experimentara em seu ofício, o desejo pela perfeição. 

Transposição da obra célebre de Thomas Mann para o cinema, Morte em Veneza teve muito a ganhar com a abordagem narrativa e estética de Luchino Visconti. De um texto complexo e cheio de nuances, o cineasta entrega um filme cujo enredo é simples, mas que é forte o suficiente para segurar o espectador e satisfazê-lo.

A Veneza de Visconti não é romantizada, como se esperaria. Ele não opta por mostrar tomadas de coberturas com belos planos gerais dos canais e lagoas da cidade, que todos os anos atraem milhares de turistas apaixonados. Ainda que tenha oportunidade como, por exemplo, quando Aschenbach resolve partir da cidade e passa pelos canais, nós assistimos um longo plano fechado no rosto martirizado do personagem enquanto sentimos o balanço da balsa pelas águas.

Ao longo de todo o filme, a câmera de Visconti passeia pelos grandes cenários da produção, seja pelos espaços suntuosos do hotel, onde o protagonista vê pela primeira vez o jovem, ou pelas areias da praia onde ele passa boa parte do tempo. A câmera observadora para em cada grupo de “figurantes” dispostos pelo espaço, sendo até possível compreender o que eles estão falando, fortificando a ideia de que o personagem é um tanto observador.

É numa dessas passeadas que Aschenbach se depara com o garoto Tadzio e desde então não desgruda mais os olhos dele. Durante toda a projeção seu olhar está sempre voltado para aquele objeto de amor platônico e para tudo que está ao redor dele. É interessante notar aqui como a ideia da homossexualidade permeia todo o filme, mas nunca se faz importante. A aparência andrógina do ator Björn Andrésen torna isso mais evidente. A atração de Aschenbach pelo jovem fica no campo da idealização, da perfeição, quase como um endeusamento de uma escultura de Michelangelo.

A busca pela perfeição não é só uma alcunha para a beleza do garoto, está relacionada também a perfeição ideológica que Aschenbach aspira para si mesmo, que ele sempre aspirou e colocou como base em sua vida. Sua rigidez moral sempre caminhara lado a lado com seu comportamento, e ali não seria diferente. Num dos flashbacks em que o vemos discutindo arduamente com um amigo questões ligadas à filosofia e a arte, Aschenbach escuta algo que não pode negar: “Quer que seu comportamento seja tão perfeito quanto sua música”.

Esses flashbacks, aliás, fazem um válido panorama do que levou o protagonista até aquele hotel praieiro em Veneza. Eles nos aproximam do personagem – funcionando mais que os excessos de zoom – nos fazendo entender os porquês do comportamento daquele homem de meia-idade. 

A atuação segura e intensa de Dirk Bogarde é fundamental para compor o complexo personagem e seus conflitos internos, e juntamente com a trilha sonora de Gustav Mahler, repleta de virtuosismo, somos transportados para todo esse momento angustiante da vida de um homem.

Ao passo que o filme vai chegando ao fim, encaramos um Aschenbach cada vez mais decadente em si mesmo. Nada evoluiu na não-relação entre ele e Tadzio, eles sequer trocam uma palavra. Aschenbach tem ataques de fúria, corre atrás de cuidar da aparência, se preocupa com o bem-estar do garoto num rompante de alucinação, definha completamente sobre as águas venezianas.

Morte em Veneza acaba por levar a refletir sobre o artista como pessoa. Aqui a busca pela perfeição parece nunca findar, mesmo quando ele desiste da procura, o poder é imponderável demais para ceder.

30 de julho de 2015

CRÍTICA: Minions

Minions, 2015, Pierre Coffin e Kyle Balda

por Victor Leite


Pequeno, amarelo e cansativo 

No não tão longínquo ano de 2010, estreava nos cinemas Meu Malvado Favorito. Um filme não particularmente memorável, nem particulamente engraçado. Era a sessão família-B. Sendo o primeiro filme da Illumination Entertainment, divisão da Universal, o filme foi um sucesso de público absoluto, arrecadando mais de 500 milhões de dólares. Obviamente, veio a sequência. Com um orçamento de apenas 7 milhões a mais que seu antecessor, o filme conseguiu o feito de arrecadar quase 1 bilhão de dólares. Uma mina de ouro. Mas qual é a explicação do sucesso dessa franquia? O visual engraçadinho? O humor baseado em gags visuais? Podemos encontrar isso nos Minions, os pequenos ajudantes do protagonista desses dois filmes. E como já aprendemos em Hollywood, o que fazemos quando se acha uma mina de ouro? Você cava.

Programado inicialmente para dezembro de 2014, o filme foi adiado para Julho de 2015, já que Meu Malvado favorito 2 havia sido lançado em uma época semelhante e seu sucesso como blockbuster de verão foi estrondoso. O marketing para Minions, inclusive, começou cedo. Desde 2014, teasers dos simpáticos seres amarelos fazendo engraçadisses antes dos filmes já eram mostrados. E mostrados. E mostrados. Uma hora cansa.

Servindo como um spin-off para a série principal, Minions pretende contar a história dos amarelinhos antes de conhecerem Gru: Desde a sopa primordial, os pequenos seres procuram vilões para servir, e cada vez que acham uma ameaça maior, vão atrás até inevitavelmente causar a morte de seus mestres. Nos anos 60, depois de muito tempo isolados e sem um propósito para viver, três corajosos membros daquela sociedade amarela decidem se aventurar pelo mundo e achar o próximo grande vilão ou vilã que fará jus ao nome de mestre.

Com uma infinidade de piadinhas sem graça e referências a cultura britânica (a maioria do filme se passa em Londres), o filme parece tentar ser bom e você pode até ficar triste por ele não conseguir. Eles parecem tentar emular aquele humor inteligente de algumas animações, com piadas de duplo sentido (que garantem que as pessoas que levam as crianças vão se divertir tanto quanto elas) e temas que procuram falar com toda a família. Bem, esse não foi o caso. Com 92 minutos, o filme poderia perder pelo menos metade da duração.  

A dublagem é outro ponto negativo. Recentemente, nem mesmo as dublagens estão recebendo a qualidade de outrora. Se em Detona Ralph, pouquíssimas escolhas da versão nacional foram acertadas, podemos contar nos dedos as vozes brasileiras que funcionaram nesse. Eu, pessoalmente, conto em um: os minions. E eu realmente não sei se eles foram dublados.

Se você realmente não tem nada pra fazer e quer fazer um agrado e levar seu parente menor pra passear, sugiro passar longe. Um passeio de bicicleta no parque, um sorvete de chocolate ou até uma sessão de Shrek ou Procurando Nemo no notebook vão ser bem melhor. No final das contas, se você quiser realmente ver, não espere rir até cair no chão. Só tenha em mente que ano que vem provavelmente vai ter outro filme com esses simpáticos baixinhos, que sim, tem sua graça, mas 90 minutos deles podem ser incrivelmente cansativos.

Cave. Cave. Cave. E convenhamos, o ouro nunca vai acabar, por que somos nós que alimentamos a mina.

13 de julho de 2015

CRÍTICA: Uma mulher sob influência

A Woman Under Influence, 1974, John Cassavetes

por Victor Leite



A loucura é relativa, contagiosa e será cinematizada
       
        Há certo horror voyeurístico em Uma Mulher Sob Influência. Em uma casa normal, uma família normal, vivendo rotinas normais. Pode ser um menino crescendo em Boyhood (Richard Linklater). Uma atriz de TV tentando alcançar o estrelato em The Comeback (HBO).  Nós assistimos a tudo isso. Compassivos, comendo pipoca ou rindo. No final somos espectadores da história e o que captamos diante dela são sentimentos.

        Quando conhecemos Mabel, vemos nela alguém diferente do seu redor. Seja através de suas roupas (cuja cor costuma destoar dos outros elementos em cenas, em que geralmente seu figurino é o mais vivo), através de gestos ou até mesmo da forma como é mostrada (em planos fechados, remetendo a uma sensação de prisão).  Interpretada por Gena Rowlands, indicada ao Oscar e vencedora do Globo de Ouro pelo desempenho, é improvável que o espectador não nutra certo sentimento pela protagonista. Não só por ela remeter a diversas mães, mas também por ela refletir certos aspectos da personalidade que podem ser comuns a várias pessoas. Com seus tiques e manias, Mabel consegue ser otimista e até um pouco aérea, tentando viver em um mundo só seu.

        Ao conhecermos Nick, percebemos nele um homem frustrado. Sendo um capacho no trabalho, tendo que trabalhar além do esperado e em horas inconvenientes, é em seu lar que ele tenta tomar controle de sua vida, para o desespero de sua esposa. O embate entre as personalidades de Nick e Mabel constroem o filme. Esse duelo exala grandes momentos, porém o maior deles é em um jantar, depois que Mabel volta da temporada de reabilitação. Inicialmente, Mabel hesita em interagir, reprimindo sua personalidade para tentar se adequar e agradar a todos os presentes. O marido, então, implora-lhe que volte a ser como era. Feito isso, a repressão dele volta com força total. Essa ambiguidade, em que ele não decide se quer a Mabel integral ou uma esposa modelo que ele tenta controlar tornam Nick um personagem tão interessante quanto sua mulher.

        Outros personagens, como o pai dos amigos dos filhos de Mabel e Nick, ou a mãe de Nick, também tem seus momentos de surto, o que vem para reforçar a sensação de horror e aversão: As pessoas, em sua eterna arrogância e presunção, cometem erros esdrúxulos achando que fazem o melhor, quando na verdade, são tão desequilibradas quanto às pessoas que tentam “ajudar”. Afinal, o que é desequilíbrio? O que é sanidade? O que é loucura?

        Indicado à Melhor Diretor no Oscar e no Globo de Ouro, John Cassavetes cria aqui o que é considerada sua obra prima. Tido como o percursor do cinema independente americano, aqui ele comprova que não se precisa de grandes orçamentos para realizar grandes filmes. Com apenas uma locação, que ajuda a transmitir a sensação de claustrofobia e prisão através de suas diversas portas, corredores e janelas, o filme tem um tom único que deixa o espectador apreensivo pelo próximo diálogo, onde cada vez mais a instabilidade se instaura e atinge a maioria dos personagens. A atuação é soberba, sobretudo a de Gena, que já foi considerada uma das melhores atuações do cinema. A cena da súplica dela ao pai, durante o jantar, é singular.

        Cassavetes, inclusive, é por vezes chamado de autor do improviso. Conhecido por ter um processo mais livre de direção, mais interessado na performance dos atores do que em convenções e restrições, o que realmente importa (como está claro neste filme) pode ser resumido na conclusão de Thierre Jousse, que analisou os procedimentos do cineasta: “Não importa se os atores improvisaram, ou se ensaiaram muito esse improviso, e sim a consequência na tela”. (Revista Cinética)

        Se você vai gritar para a tela e tentar convencer Mabel a tomar as rédeas e deixar o marido abusivo (como eu fiz) ou apenas querer desligar a tela para a família fechar as porta e resolverem seus problemas sozinhos, o filme é uma obra única, que sobreviveu ao teste do tempo e ainda hoje mostra que tem força e consegue impactar. Soberbo.

2 de julho de 2015

CRÍTICA: Nenette e Boni

Nenétte et Boni, 1996, Claire Denis

Por Isabelle Ramos


As sequências iniciais de Nenétte et Boni (Claire Denis, 1996) são preenchidas de cortes repentinos que parecem não conectar as cenas. O sentido da trama parece distante e, de fato, nos primeiros quarenta minutos nada acontece de muita relevância, além da apresentação de alguns personagens que também não representam tanto significado ao enredo e a passagem pela vida de Boniface.

O longa inicialmente se apresenta nas fantasias que Boni traça para o seu perfil em meio aos devaneios sexuais que acabam pairando sobre o filme, quando é apresentado ao espectador através da atração que sente pela padeira. Os sons, a corporeidade impregnada nas sequências ricas em planos detalhe, valorizam os movimentos e gestos realizados de maneira a representar essa tensão sexual, conduzindo o olhar do espectador, mas permitindo suscitar desfechos.

A narrativa se desenvolve com a chegada de sua irmã Nenétte que representa o lado realista na vida de Boni. A rejeição inicial revela a problemática de uma família que foi desestruturada. A morte da mãe e a distância do pai na vida dos filhos, principalmente na de Boni, traça a necessidade que os irmãos têm em criar um vínculo para amadurecer. Claire Denis representa esse aspecto na gravidez de Antonette, agora os personagens têm de decidir essa passagem para a vida adulta.

Esse processo de construção, desconstrução e troca se dá até as sequências finais, Nenétte ainda resistindo em sua insegurança e no rompimento da relutância de Boni com a presença da irmã e sua gravidez. Durante a aproximação dos irmãos, os corpos ainda tem destaque na construção fílmica. Ainda tensionando Boniface de maneira mais sexual, e suavizando as formas de Nenétte em sua gravidez.

Enquanto o longa caminha através das fantasias e as realidades de Boni e o drama de sua irmã, o espectador pode observar que a sua filmagem é explorada mais internamente do que externamente, além de ser permeado de tons frios e ser predominante o uso do vermelho e do azul no cenário, nas roupas e nos acessórios, na intenção de representar a França juntamente com as cenas externas, a Marseille em que o filme está instalado.

Com suas sequências enfadonhas, Nenétte et Boni não é uma experiência fácil. Se apegando a um aspecto narrativo, o desenvolvimento monótono da trama e a longa espera por algum acontecimento faz com que ele seja um filme que dá chance ao espectador de se perder diante do seu seguimento e se cansar facilmente.

30 de junho de 2015

CRÍTICA: A rotina tem seu encanto

秋刀魚の味, 1962, Yasujirō Ozu

por Victor Leite


Mergulhando na sutileza, em 2.5D

Comecei o filme com sono. Não que o filme tenha me dado essa sensação, mas já estava com sono antes de começa-lo. É um erro, eu sei. Mas em seu início, A Rotina Tem Seu Encanto já encanta (sacou?). Cartelas com ilustrações e uma trilha sonora amena ditam o tom dos próximos quase 120 minutos de filme. Shūhei, um viúvo que lutou na Segunda Guerra Mundial, encontra com um velho professor e a partir do conhecimento que a filha desse professor nunca se casou, começa a refletir sobre seu futuro e de sua família, especialmente da filha, Michiko.

Na crítica do site contracorrente, há a seguinte frase: “Ao deslizar sobre esta superfície, os personagens revelam um mundo bidimensional, que se desdobra em labirintos espaciais sem relevo.” Eu discordo. A escolha do diretor em câmeras estáticas criam um cenário talvez até mais tridimensional do que as câmeras rodopiantes de hoje em dia. Cada plano parece uma pintura, um registro dessa família japonesa, que nos convida a entrar em sua casa e conhecer sua encantadora (sacou?) rotina.

Os cortes entre uma cena e outra, também marca registrada do diretor, nunca utilizam o fade out ou outros meios típicos. Ozu se utiliza de planos com determinados objetos ou edifícios, geralmente onde a próxima cena irá acontecer ou a última cena aconteceu. Confesso que na primeira vez, isso causa certo estranhamento. Mas a medida que o filme progride, essas transições entre as cenas se tornam uma coisa orgânica dentro do filme, totalmente compreensível e agradável com o ritmo.

Mas eu encontrei na narrativa um dos pontos mais fortes do filme (como sempre acontece comigo). Não que o filme não seja impecável em sua fotografia, áudio, direção ou outros aspectos técnicos. Kōgo Noda, roteirista que colaborava frequentemente com Ozu (e, curiosamente, esse foi o último filme dos dois) consegue junto com o diretor (que co-escreveu o roteiro) criar uma história singela e sutil, contudo não menos poderosa. A história desse pai e sua família consegue abordar temas pesados como velhice, machismo, guerra, amizade e a própria vida com uma leveza improvável a principio, mas alcançada com louvor. Penso nesse filme como uma reflexão de seu protagonista: quando percebe que os rumos da vida (através de seu antigo professor, seus amigos, filhos, etc) nem sempre acontecem como planejado, ele questiona se suas decisões foram as melhores para aqueles a que suas decisões influenciariam. Em quase todas as cenas, existe alguém bebendo, ele ou seus amigos na maioria. É a forma de descanso e lazer daqueles que já viveram tanto, já sofreram tanto e agora apenas querem viver uma vida sossegada e em seus limites, feliz. A ausência de qualquer tipo de vilania, maquinação ou maldade em si também é um dos pontos positivos da narrativa. É lindo apenas ver seres humanos, com suas fraquezas, alegrias e tristezas, apenas lá, vivendo suas rotinas. Existe uma cena particular (a cena que realmente me acordou do sono) que me fez ficar grudado na tela: a filha do professor de Shūhei senta-se em um banco e chora, vendo seu pai bêbado e claramente infeliz com seu destino. Posteriormente, após outra visita do ex-aluno, o próprio professor senta nesse mesmo banco e repete a expressão da filha. Palavras não existem para descrever o que essa cena causou e significou para mim. Única e poderosa, capaz de dizer muito apenas com duas imagens: filha e pai, iguais.

Claramente, Ozu era um mestre do cinema. Com duas horas de conversas, descobertas, risos e romance, esse filme consegue entreter e maravilhar, com sua onipresente sutileza. Um achado da sétima arte que deve ser visto por todos, principalmente para recalibrar aqueles mais acostumados com tiros, explosões e movimentação acelerada. Seus planos fixos vão lhe encantar (prometo que parei).

28 de junho de 2015

CRÍTICA: Fahrenheit 11 de Setembro

Fahrenheit 9/11, 2004, Michael Moore

Por Evandro Lira


Michael Moore e seu cinema dividem opiniões desde o início da sua carreira, lá em 1989 com o documentário Roger e Eu. Conhecido e mitificado pela sua postura crítica em relação à figura política e econômica dos Estados Unidos, que transcende as fronteiras de todo o mundo, Moore escancara em suas obras tudo que há de mais sórdido nos bastidores dessa grande potência.

E não é mesmo tão difícil arranjar admiradores e inimigos quando se vai por esse viés. Como ensina uma famosa sabedoria popular: política, tal qual gosto, futebol e religião, não se discute. Gostar ou não dos filmes de Michael Moore é basicamente separar esquerda de direita, democrata de republicano, comunistas de capitalistas... e nós não podemos cair nesse erro, afinal se as coisas fossem tão simples assim tudo isso não seria discutível.

Tocando na ferida do povo americano a cada novo filme ou livro (Moore também é escritor), ele usa fatos trágicos que ocorreram, seja na sua pequena cidade do interior ou no grande centro financeiro do país, como ponta pé para questionar o que precisa ser questionado.

É obvio que não seria diferente no seu Fahrenheit 11 de Setembro, 2004. Com um Oscar na prateleira (por Tiros em Columbine, 2002), um público formado, e as atenções voltadas para seus novos trabalhos, Michael Moore destrincha os acontecimentos que levaram ao “maior atentado terrorista da história” e principalmente as consequências que dele se fizeram. Está lá o seu habitual sarcasmo afiado, seu total senso de parcialidade, sua narração maliciosa e sua estética requintada.

O filme abre contextualizando o espectador nas eleições presidenciais americanas de 2000, na qual o vice-presidente Al Gore disputava com o governador do Texas, George W. Bush. No primeiro minuto, Moore já sugere que a vitória de Bush foi resultado de fraude eleitoral, polêmica de caráter amplamente discutida pelo povo americano.

O então Presidente Bush é quase que o pro-antagonista de Fahrenheit, sem dúvidas. Mostrando gravações de arquivo de um Bush confiante, debochado e infantil, diferente do que se costuma ver nos discursos políticos, Moore nos mostra que os primeiros oito meses de mandato do presidente não foram muito bem sucedidos. Crises na economia, no congresso e nas ruas, resumem o 2001 dos EUA. E dando início ao seu humor elaborado, Moore nos mostra que a solução encontrada por W. Bush foi tirar umas férias. Tem-se então uma sequência divertida, com trilha sonora animada, montagem rápida, um Bush sorridente e animado, mas... não por muito tempo.

Os créditos do filme se dão paralelamente com cenas de jornalistas e políticos – incluindo o próprio Bush – se maquiando antes de alguma aparição pública na tv. Percebe-se uma sutil investida do cineasta para dizer o quão bons atores são esses personagens reais. Após isso, uma tela preta toma o filme por uns minutos, e só conseguimos ouvir gritos de horror, ambiente, barulhos de sirenes e é impossível não remetermos imediatamente ao 11 de setembro. Moore não mostra em nenhum momento das duas horas de duração aquelas cenas que chocaram o mundo das torres em chamas ou dos aviões se chocando, afinal nós estamos cansados de vê-las. O que importa aqui é o que causou nas pessoas, é o sentimento, Moore vai fundo nas emoções do povo, de forma objetiva, mas não simples. Como prova, o que se segue à esse momento são closes das pessoas nas ruas e suas reações naquela manhã do atentado.

Por incrível que pareça, o filme não é sobre a tragédia do 11 de setembro, e sim sobre todo o contexto dessa e à partir dessa. Fahrenheit é sobre a política do medo que se estabeleceu não só nos Estados Unidos, mas em todo o planeta. É sobre como o ocidente passou a olhar pra si mesmo no início desse século que começava, e sobre como desde então encaramos de forma tão pré-julgadora os motivos dos outros, só pensando no nosso bem-estar e segurança.

O documentário aborda as verdadeiras razões do Governo Bush invadir o Afeganistão em 2001 e o Iraque em 2003, que segundo o filme, se deram mais pelos interesses particulares da indústria de petróleo dos EUA que do interesse em proteger os americanos do “inimigo”. Moore ainda especula uma possível relação de negócios entre a família de George W. Bush com diversas famílias árabes, incluindo a família Bin Laden, causa essa que levou o governo a liberar parentes de Osama logo após os atentados sem qualquer tipo de interrogatório.

Focando na “guerra ao terror”, podemos ver retratos impiedosos causados pela invasão no Iraque, com milhares de civis mortos, incluindo crianças – Moore não nos poupa de cenas como essas. Ele nos mostra também um lado pouco explorado desse contexto, o dos soldados e suas famílias. Sim, Moore não é anti-americano, pelo contrário, os americanos são vítimas de todo um sistema nos seus filmes.

Conhecemos o Patriot Act num dos momentos do longa, um plano do governo que se livrou de algumas amarras da Constituição para se tornar um ato legal. Ele promove a espionagem, fere gravemente os direitos civis e humanos, se dando o direito de obter qualquer informação de interesse do governo. Moore repudia o ato claramente, e mostra que isso foi uma escolha imposta ao povo americano pelo governo com base em toda a sua política do medo.

Michael Moore realmente explora as emoções do espectador com todos os artifícios possíveis, como o uso da trilha sonora melancólica nos momentos certos, os closes nos rostos das pessoas entrevistadas, nas perguntas extremamente persuasivas que faz a elas e etc.

Seu senso de montagem é brilhante, toda a estética do seu filme é precisa e eficiente. O documentarista sabe, melhor do que ninguém, como fazer perguntas constrangedoras sem a menor vergonha na cara, como fica claro no momento em que ele está em frente ao congresso nacional, abordando os congressistas e pedindo os nomes de seus filhos para alistá-los na guerra. É cruel, mas revigorante ao mesmo tempo.

Moore é facilmente acusado de manipulador, oportunista, anti-ético, e é difícil não concordar com isso, pois me parece óbvio. No entanto, acho fácil assumir que Moore não é hipócrita, ele faz tudo isso sem maquiagem. Usa a ferramenta que melhor domina, o cinema, para dizer o que pensa, e ora, não é isso a arte?

O filme acaba por levantar uma discussão interessante sobre o próprio cinema, no caso sobre o gênero documentário: a necessidade de documentar sem intervir, sendo imparcial. Fica muito claro assistindo Fahrenheit, e todos os outros do cineasta, que isso não se prova correto. Se Moore não faz documentário, o que ele faz? A neutralidade pode sim estar presente num filme documentário, se assim for a sua proposta, mas eu particularmente acho essa uma tarefa difícil. Nem a própria imprensa, que tem o discurso de mostrar o fato pelo fato cumpre esse papel, e aí está um dos maiores perigos dos meios de comunicação de massa e também um dos maiores méritos de Michael Moore. Ele mostra o que quer, deixando extremamente claro que é nisso que ele quer que você acredite.

Não é na parte jornalística que Michael Moore tem os seus melhores momentos, e sim nos aspectos narrativos dos seus filmes. O mais interessante de Fahrenheit não é quando os fatos são mostrados, e sim quando casos são expostos, desabafos são vistos, ouvidos e sentidos. Michael Moore não é só um cidadão com uma causa, ele é um artista, um homem do entretenimento, um contador de crônicas sociais.